Seguir Compartilhar Próximo blog

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Entre self-services, galhofas e livros

Quanto é o livro?
- 20 reais.
- Hum, gostei da capa! Disse a moça, lendo o texto na orelha do livro.
- Você é o autor?
- Sim.
- Ah, então assina por favor.

Fiz uma pequena dedicatória, datei e assinei. Guardei o dinheiro, agradeci e recebi de bom grado o sorriso da nova leitora. Estava na Festa Literária de Cachoeira e já tinha percebido o quanto a capa do livro era chamativa, não era a primeira vez que me diziam isso.



Lembrei de anos atrás, quando passei no vestibular para Comunicação/Jornalismo da Uesb e abandonei o curso de Administração. Até então, vivia um ambiente acadêmico formal, assistia aulas em um turno e depois ia embora, tocar os outros afazeres que não dialogavam com a academia. Por isso, ao chegar ao novo curso, me identifiquei com os múltiplos talentos e o clima de “viver a universidade” que até então não conhecia. A formação não se dava apenas nas salas de aula, mas, principalmente nos corredores, nas lendas que corriam sobre professores e feitos de alunos, nas histórias de viagens, no engajamento político, nos produtos alternativos, como zines e panfletos, nas músicas nos corredores. Que me perdoem os antigos colegas de ciência de gestão, mas, mesmo com a discrição de um “velho aluno da casa” eu me encantava e procurarava absorver tudo daquele universo.


Logo nos primeiros dias, me chamou a atenção uma dupla. Quase sempre juntos, me lembrava Gil e Caetano, nos tempos da Tropicália. Tinha razões para tal associação, pois Gil Brito e Galuber Lacerda, além de fazerem dupla, nada a ver com dupla sertaneja, tinham uma parceria de produção, arrisco até em dizer que havia, e talvez ainda há, uma parceria intelectual. Faziam parte da turma antecessora da minha, eram meus veteranos. Glauber tocava violão, que sempre levava nas reuniões, nos protestos, e Gil desenhava, muitas das vezes no calor da hora. Ambos, juntamente com outros colegas, escreviam e editavam um jornalzinho humorístico, o “Urtigão”. A primeira vez que o li me vi dando risadas sozinho. Fazer humor não é fácil, e, quanto mais este se eleva na escala de sutileza, maior é o nível de dificuldade, de fazer e de compreender. Creio que é por isso que o chamado humor inteligente tem tão poucos criadores e não é assimilado por todos. Bem, não importa tais divagações conceituais agora. Andavam juntos e eu, nas oportunidades que surgiam, me achegava e participava da conversa. Algo que muito me chamou a atenção era a bagagem cultural da dupla – ainda estou falando de dois sujeitos como se fossem um só, perdoem-me a simplificação, ao menos por hora -. Mesmo de pouca idade, eles falavam dos anos setenta e oitenta como se estivesse vivido lá. Jornais, jornalistas, entrevistas, músicas, artistas... Eram, e ainda são, almanaques risonhos que, a toda oportunidade, nos brindam com tiradas humorísticas. Nessas horas, como que combinado, viravam-se um para o outro, completavam a frase e irrompiam em gargalhadas. Nesses momento, minha associação mental com outras duplas conhecidas mudava e eu dava um pulo: não era mais Gil e Caetano, mas a versão acadêmica de Beavis e Butthead. Sós, Glauber é o de risada mais fácil e Gil se apresenta como um cara mais tímido. Até onde me consta, Glauber cultiva a sobriedade. Gil toma umas, talvez por isso, e por esses acasos da vida, acabei tendo mais contato com Gil Brito.

Para os acadêmicos da Bahia, o ano de 2007 foi marcado por um greve de professores. Eu estava cursando a disciplina Jornalismo Impresso II e surgiu a pauta de cobrir um ato na capital, iria no ônibus fretado pela Associação de Docentes da Uesb. No dia, hora e local combinado para pegar o transporte, em meio aos professores que também lá estavam, encontrei Gil Brito, que também iria produzir um material jornalístico sobre a greve. Éramos os únicos alunos ali. Entre conversas, a viagem seguiu fluída, de sorte que logo estávamos na sinaleira do Shopping Iguatemi, cobrindo o ato dos grevistas. Depois nos levaram para almoçar, defronte de onde estávamos, pois voltaríamos no mesmo dia. Era um desses restaurantes de praças de alimentação de shopping. De boa qualidade e, para os nossos padrões, caro. Sabíamos que a despesa seria paga pela Associação. Antes de comer, sugeri a Gil uma cerveja, nesse caso paga por nós. Tomamos uma, depois outra e mais outra... Como bebedor, reconheci logo o outro que me fazia companhia. Por fim resolvemos almoçar. Olhamos o preço do quilo, comentamos o valor além-mundo em relação ao nosso e demos de ombros, não pagaríamos mesmo. Empolgado, fiz meu prato: coloquei junto carne de sol com camarão, feijoada com vatapá, entre outras misturas exóticas que o meu paladar etilizado me induzia a fazer. Na balança, me assutei e senti certa vergonha, pois meu prato chegava a quase 800 gramas. Peguei os talheres e guardanapos e esperei o camarada pesar o seu. Já sentia certo alívio por minha “falta de educação” ao fazer meu prato quando vi o de Gil Brito, uma serra digna para um garimpeiro esfomeado desbastar. Ao pesar, não só me senti aliviado pois, se no início senti certa vergonha da minha “gula e falta de modos”, com os 1.2 kg da serra de Gil Brito experimentei uma cumplicidade galhofeira. Caminhamos entre as mesas, exibindo os nossos everests de massas, carnes, guisados e molhos. Voltamos para a mesa onde estávamos, ao lado da dos professores. Estes, ao olharem para nós, não disfarçaram o assombro com a quantidade de comida, talvez porque não aparentamos sermos comilões, na verdade éramos, a ainda somos, magrelos. Com toda aquela comida não deverímaos ser gordos de ruindade, é de se pensar. Mais tarde, como combinado, observamos a expressão do diretor da Associação ao pagar a conta. Pronto, nossa travessura gourmética estava feita. Foi uma boa estreia.

Chegamos em Conquista às quatro da manhã. Na época, eu morava na ocupação que existia no campus, onde hoje funciona a TV e Rádio Uesb. O ônibus nos deixou no Inocoop, de forma que, ainda no escuro da manhã e sob chuva fina, mas que molhava, caminhamos os trẽs quilômetros até a Universidade. Entramos na residência com as primeiras luzes do dia. Conseguimos roupas secas e uma garrafa de vinho, que alguma alma bondosa abriu, não tomou e deixou por ali. Tomamos sem cerimônia e de boa consciência, pois se aparecesse o dono a reporíamos. Gil foi embora e a partir dessa data, vez ou outra, além dos esbarrões e conversas pelos corredores uesbianos, passamos a nos encontrar na noite, em mesas de botecos, sobretudo no antigo Paraki. Fiquei bêbado algumas vezes com o galhofeiro, bem como também já o acompanhei quando meio alto.

Recentemente, em um desses encontros etílicos, falei com Gil que estava com um material, algo que, pelo momento em que escrevi, pela entrega e certa experimentação, eu o considerava publicável. Perguntei se ele se interessaria em fazer a ilustração da capa. Acertamos que eu mandaria o texto e, havendo identificação, ele ficaria a vontade para fazer ao seu gosto. Em uma noite mandei o texto. Como, em dias normais, costumo trocar a noite pelo dia em frente ao computador, Gil me mandou uma mensagem falando que gostou do livro. Respondi e começamos um diálogo pelo Facebook, madrugada adentro. Do outro lado da tela, pelas mensagens que recebia, vi que o cara tinha realmente gostado do texto, não só gostado, mas se identificado. Pronto, iria fazer a capa. Reli as mensagens e, de certa forma, me senti o Beavis, ou o Butthead na dupla, não importa, pois Gil Brito disse tudo o que eu, se fosse outro que não o autor, teria dito sobre o livro. Pronto, o prefácio também estava encaminhado, carecendo apenas de alguma edições!
Dias depois, recebi a ilustração e o prefácio e tive a feliz constação de que, para o Quartos de Hotel, não haveria parceria mais acertada.

Passei dias viajando por várias cidades, vendendo e divulgando o livro, e ouvi de muitos que a capa, e o prefácio - que era o que se lia de imediato, na orelha do livro -, estavam muito bons. A muitos falei do autor. Quando retornei de viagem, em uma manhã preguiçosa e fria de domingo, primeira ligação que fiz foi para Gil Brito.


Nenhum comentário:

Postar um comentário