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domingo, 6 de abril de 2014

Quase noite

Quando abriu os olhos era quase noite. Numa pausa do sono, olhou ao redor, buscou a luz mais próxima, ali, onde estava, não conseguia identificar muito bem as horas, mas lembrou-se que estavam juntos desde a noite anterior, quando o conheceu num bar imundo, num beco, no centro da cidade. Sobre um colchão velho que ele havia jogado no chão da sala, ela repousava. Espreguiçava-se; em seu corpo uma languidez de sentidos; deitada bailava. Um arrepio de frio estremeceu-lhe os ombros, cobriu-se com um lençol, estava nua e estranhava a multidão de afetos em seu corpo deserto. O crepúsculo fazia festa, pela fresta da janela daquele apartamento pequeno e aberto para a luz, ela imaginou – é quase noite! Ainda olhava ao redor quando ergueu a cabeça em divina busca no teto monótono, procurando o inesperado, viu-o. Ele estava ali, muito perto. Buscou-o com os olhos de desejo. Estava sentado. Sobre uma escrivaninha; num computador, escrevia cartas, poemas, segredos. O céu de anil limpo, onde nuvens serenas esparramavam-se com o vento, havia sumido; era quase noite. Olhou-o mais uma vez, poderia enfrentar qualquer escuridão, poderia viver no mais escuro breu, a felicidade do corpo, o bailar dos sentidos, ele muito perto; era lindo e audaz.


Espichou-se. Mexeu o corpo com uma lascívia licenciosa que o fez voltar-se, então, abandonando papeis, máquinas e poemas, pôs-se ao lado dela, deitou-se; sob os lençóis ela era um corpo que canta, que em fins de tarde matreira, ou início de noite dormideira, tem a umidade da madrugada, marulhar de mar calmo, luz suave da manhã. Tocava em algum lugar da casa uma canção lúgubre e, pela luz que penetra a sala, pelos vidros de água claras da janela da cozinha, pareceu que a madrugada estava chegando. O crepúsculo é sempre uma madrugada na confusão do céu, pensou. Na sala, instalavam-se as luzes roubadas da rua, e se confundiam com um alvorecer no centro de um círculo de serenidade que se ampliava apagando a memória e a necessidade de ir embora. Não, não era a madrugada que chegava, era quase noite e o dia, aquele dia, havia começado gloriosamente.
Aquele dia, que agora parecia acabar, havia começado feliz. Depois de se encontrarem na noite anterior, e passarem toda a madrugada juntos, aquela manhã havia aparecido com um céu azul, requinte de flores, astrais, sóis, poemas de amor; e foi só nesta manhã, no azul de uma alvorada elétrica em que o dia está chegando furtivamente, uma manhã quente, que ela havia, em sua percepção menos abstrata, sentido essa cidade física da qual não tivera uma sensação tão leve durante todos os anos anteriormente vividos por lá. Naquela manhã, mesmo depois de Eos – a aurora -, com seus dedos cor-de-rosa, abrir as portas do céu para o carro do Sol, eles ainda se amavam. Haviam se amado por toda a madrugada com a urgência calma do navegador que precisa remar, por alguns minutos, ela repousara em seus braços, no peito, suspiros. Quando o dia fez-se alvo, levantaram-se, vestiram-se, pentearam-se, olharam-se os dois, juntos ao espelho, enquanto espalhavam pelo rosto um grudento protetor solar. Saíram do pequeno apartamento onde ele vivia já era manhã alta, atravessaram ruas, subiram becos, caminharam asfalto, seguiram até o outro lado da cidade. Ela precisava voltar em casa, ele a esperou na esquina. Em casa, ela desabotoou lentamente o casaco, refletia sobre ele, sobre ela, sobre o riso solto das horas que passaram juntos, no fim da vagarosa operação, ficou triste e serena, com ele dentro do peito; mas as duras camadas de indiferença que tinham protegido sua inquietude estavam caindo, e o mundo exterior começava a alcança-la, pensou. Em meio a essas reflexões, ela, que ainda o tinha no peito, apressou-se, se banhou com rapidez, tinha que encontrá-lo, não podia deixá-lo esperando por tanto tempo, ele estava sentado no bar mais próximo, na esquina, havia pedido uma cerveja e a esperava. Era riso e cansaço.
Naquela manhã, flanaram furtivamente pelas ruas do bairro, beberam água doce numa barraca da feira, enquanto conversavam despretensiosamente sobre todas as coisas, sobre coisa nenhuma, sobre tudo, sobre nada. Seus olhos, vez ou outra se encontravam, e ela, guardiã do desejo, contou-o sobre o mito do amor que alcança aqueles que têm os olhos como miradas. Ele ria o riso do contentamento. Depois de satisfeitos caminharam mais um pouco, atravessaram ruas e avenidas movimentadas de carros ferozes, andando, vez ou outra corriam, ele segurava a mão dela, ela deixava-se levar, arrastada em seu sonho de menina, como adolescentes que se deslumbram diante do primeiro amor, eles eram leve folha levada. Desviando caminhos, seguindo destinos, cantarolando canções distantes, compraram vinho barato, almoçaram disparates e, durante algum tempo, subindo as escadas das horas, os amantes se amaram com uma disposição hostil, aquilo era amor. O mais desejado amor; companhia serena e honesta.
Eram urgentes como uma máquina de escrever, uma proximidade como é a proximidade de planetas, um verão tórrido, um tilintar de raios. Depois desse dia de luz, depois de amarem-se por toda a manhã e tarde quentes, deitada e nua, no chão da sala onde ele escrevia poemas, ela percebeu, realmente, que já era quase noite, resolveu que deveria ir embora. Ele, pediu que ficasse; ela, contorcida de medo do amor; levantou-se, vagarosa, vestiu a roupa. Desceram as escadas, ele, cordial, acompanhava-a enquanto ela cantarolava uma canção de uma banda norueguesa muito famosa na década de oitenta; ele, enquanto ria daquela inocência, e tentava entender a letra da música em inglês, disparou escada abaixo; ela, não entendendo muito bem porque ele corria, olhou-o ainda de um vão anterior ao final dos degraus, quando o viu, olhou-o com seus olhos de raivosa calmaria, ele estava ao pé da escada e, para ela abria os braços, então foi que ela percebeu; já era noite.




Madame JH

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