Do galho em que estava, podia ver os pequenos seios da moça que ria, sentada em um tronco, logo abaixo. Como uma massa mole e aderente, o riso me retinha. O sol do meio dia, a sombra fresca das folhas, a leve brisa que refrescava: poderíamos respirar sentimentos. Uma melodia soou ao fundo, a princípio baixa e envolvente. Depois foi aumentando, mais, cada vez mais. Como um trem que rasga a plácida paisagem, o som cresceu tremendamente, abafando o riso, apagando a moça, a árvore, a verdura e todo invólucro onde reina o impossível...
Em um gesto mecânico acordei e desativei o alarme do telefone celular. Contemplei o teto por alguns instantes.
Sábado, 5:30 da manhã. Revisei de memória a agenda: às 7:30, como atividade de uma disciplina da faculdade, faríamos uma visita ao IML ( Instituto Médico Legal). O restante do dia definiria depois.
Após instantes de preguiçosa divagação, dirigi-me ao banheiro – será que existe alguém que, após se levantar, vai a outro lugar senão o banheiro? Como em outras manhãs, lembrei-me que precisava trocar a resistência do chuveiro. A água gelada me fez hesitar por instantes. O consolo de que banho frio faz bem à saúde impulsionou-me para a água que jorrava.
Banho tomado e outros preparativos de praxe, optei por fazer o trajeto a pé – calculei que demoraria uns 30 minutos. Àquela hora, a manhã avançava com a promessa de que seria um dia quente. Ensaiei uma corrida – o que me fez lembrar de diminuir os excessos e cuidar mais da saúde. Desisti após algumas quadras. De fato, deveria me dedicar a alguma prática esportiva. Meus pulmões já não eram os mesmos de antes. Pensei amargamente.
Às 7:20 cheguei ao Complexo Policial e logo percebi que havia uma movimentação na entrada do necrotério. Um carro fúnebre acabara de estacionar. De início nada perguntei, apenas observei a atividade do homem da funerária e do plantonista, imbuídos na tarefa de levar o corpo para o interior do prédio. Havia um terceiro homem que, de acordo com seu semblante, era parente do falecido.
Após a remoção do cadáver, puxei conversa com o auxiliar do legista. Chamava-se Júlio. Informei-lhe que havíamos agendado, com o médico legista, uma visita. Apesar do convite para sentar e aguardar preferi esperar os colegas no portão. Antes que a equipe chegasse tive uns 20 minutos para a leitura de um texto que conceituava cultura. Cristiano, Welder, Bianca, Diogo e Naiara chegaram quase ao mesmo tempo. Minutos depois veio Natália.
Com a equipe completa procuramos Júlio para uma conversa preliminar.
- Você não tem medo de trabalhar com mortos? Perguntou uma das meninas, revelando a comum curiosidade em torno do sobrenatural.
- Não, respondeu o auxiliar de legista – aqui é um dos lugares mais tranqüilos. O que me chateia mesmo é quando chega alguém e fica tocando a campainha insistentemente. Quando estou de plantão durmo em um quarto no andar de cima e, até pentear-me e vestir a roupa, demora um pouco pra atender. Por isso coloquei este aviso na parede dizendo que só toquem uma vez.
- O que faz o auxiliar de legista? Perguntou um colega.
- Bem, além de recolher e transportar cadáveres, ajuda o médico na necropsia. Respondeu.
- Como assim? Insistiu outra colega.
---No trabalho de exame cadavérico o legista, enquanto faz as anotações, dá ordens ao auxiliar para cortar ou serrar determinado lugar do corpo. Esclareceu o funcionário com um discreto sorriso frente às expressões de assombro.
---Então todo o trabalho pesado é você que faz? Perguntei.
---Sim. É isso que acontece com a maioria que não cursou uma faculdade: fazer as tarefas mais pesadas. Respondeu-me com uma ponta de pesar.
--- E como é seu dia-a-dia depois dessas tarefas? Emendou Natália.
---Como todo mundo, levo uma vida normal. Antes trabalhava como caminhoneiro em São Paulo. Então fiz concurso para a Polícia Técnica da Bahia, e aqui estou. No início é um pouco difícil e a gente faz um curso. Depois a gente se acostuma. Já trabalhei em várias necropsias, nem dá pra contar. Trabalhei com cadáveres de todos os tipos: homens, velhos, crianças, mulheres e moças. Todo tipo de gente e todo tipo de morte.
---E você não fica chocado? Insistiu a colega.
---A gente se acostuma. Para quem trabalha com isso, o corpo não é mais gente, é apenas um corpo, uma peça anatômica. Mas, enquanto o médico legista não chega, vamos entrar, para vocês irem se acostumando. Concluiu Júlio com o convite, quase uma intimação.
A frente do necrotério é revestida de azulejos brancos, lembrando um hospital. Uma porta de esquadria de alumínio, preenchida com vidros opacos, separa o ambiente do mundo exterior. Já dentro da construção notei o caixão da funerária que havia abrigado o corpo até o IML. Além disso, apenas duas cadeiras, dessas de metal e estofado preto, ornavam a sala. Á minha frente, a uma distância de uns 10 metros , duas portas indicam a presença de banheiros. Próximo aos banheiros, uma escada leva ao andar superior. Do lado direito há um corredor que dá acesso a outras dependências do prédio. À esquerda duas entradas: uma fechada com a informação: “Putrefatos”; e outra com as portas de totalmente abertas. Nesta última pude ver, estirado em um móvel, um corpo. Com duas bancadas de inox - uma equipada com um exaustor em cima - pias, forno, geladeira e armário, o recinto lembrava uma cozinha. Um forte cheiro de sangue impregnava o ambiente e invadia as narinas. A imagem do cadáver, estirado em uma das mesas, desfazia a impressão de cozinha para substituí-la por uma paisagem de açougue.
Depois de uma rápida olhada pelo local e um breve exame visual no corpo, fomos esperar o médico legista do lado de fora do prédio. Aproximava-se das 8:30. Júlio nos informou que o médico poderia chegar a qualquer momento. Talvez ele nos deixasse assistir a necropsia. Alguns de nós não fazíamos questão de tal experiência. Outros, como eu, apesar da incerteza do desconhecido, estavam ansiosos.
O médico legista desceu de um Pálio Weekend vermelho, que estacionara perto de onde estávamos. Permaneceram no veículo duas crianças – que deduzi serem seus filhos. Depois das devidas apresentações, o médico convidou-nos a entrar e acompanhar todo o processo. Os colegas iniciaram as atividades típicas: anotaram informações e fizeram perguntas com o gravador em on. O legista explicou que necropsia ou autópsia era a mesma coisa - o que discordo, pois auto quer dizer por si próprio. Como sabemos mortos não podem fazer exames cadavéricos em si mesmos.
A necropsia é uma atividade imposta por Lei Federal e tem como objetivo identificar a causa do óbito. Mortes violentas, ou inesperadas, têm, por força de lei, que serem investigadas. A necropsia é peça chave na Medicina Legal.
Neste meio tempo lembrei que, por sair muito cedo de casa, não havia tomado café. Sabia também – experiência dos tempos em que estagiei em um pronto socorro – que não podemos ver cenas fortes de estomago vazio: a taxa de glicose cai, causando sudorese, turvamento da visão e desmaio. Veio à mente o termo, utilizado por profissionais da saúde, que define o fenômeno: caruara. Para evitar a caruara havia trazido dois sanduíches de pão com presunto. Conclui que aquele era o momento de forrar o estomago. Sentei em uma das cadeiras da entrada principal – de onde estava não poderia ver a sala de necropsias - e iniciei minha refeição, ignorando o cheiro forte de sangue que ainda se fazia notar. Um colega veio e, vendo-me comer tranquilamente, se assustou com a minha suposta frieza. Expliquei-lhe que não tinha nada a ver. Que uma coisa era diferente da outra: a carne que eu estava comendo não era a mesma que estava na outra sala, é tudo psicológico, finalizei. Observei a fatia de presunto de forma diferente, não com nojo, mas com outro olhar: à minha frente estavam proteínas, glicídios, lipídios, moléculas; carbono, nitrogênio, oxigênio... Este pedaço de presunto já foi um ser vivo, pertenceu ao reino dos seres animados. Hoje ele irá fazer parte de outro ser vivo. Um dia também retornarei ao reino das coisas inanimadas e, talvez, o que me compõe alimentará animais e plantas que, por seu turno, alimentarão outros animais... É necessário, é a vida. Com tais pensamentos mastiguei os últimos pedaços de meu desjejum.
O legista deu as primeiras orientações ao auxiliar. Calça jeans, cueca amarela, tênis branco, camisa de botões e manga comprida, na cor azul,– relatou o funcionário para o médico, que anotava em um formulário padronizado. A superfície da bancada de necropsia era dotada de pequenos cilindros que, à medida que o corpo era puxado ou empurrado, deslizava, lembrando uma esteira de linha de produção. No equipamento havia, ainda, uma mangueira e um sistema de escoamento, de forma que, enquanto o corpo era lavado, a mistura de água com sangue escorria por uma tubulação. Em uma das extremidades um artefato curioso chamava atenção: duas hastes metálicas, em forma de meia-lua, serviam como suporte para cabeça.
Com o cadáver nu o médico iniciou um exame preliminar. Diante da certa distância que alguns conservavam, o legista tentou nos encorajar: não tenham medo, este não faz mais mal a ninguém, já fez. Os ferimentos contam um pouco dos últimos momentos daquele homem: na mão esquerda, perto do dedo mindinho, havia um corte profundo – ferimento de defesa, como informou o legista. Na perna esquerda foi encontrada uma perfuração, também de defesa, conclui. Nas costas, na altura dos pulmões, havia duas perfurações – a julgar pelo diâmetro, deduzi que foram causadas por estocadas de punhal. A cabeça tinha sido fendida, na parte superior, onde o cabelo faz o que chamamos de redemoinho, por quatro golpes – imaginei que, a julgar pela característica dos ferimentos, a arma utilizada fora um facão. No pescoço, do lado direito, havia um corte, que se estendia da base do pescoço até o início da orelha – em um primeiro julgamento conclui-se, para o leigo, que aquela fora a lesão fatal. Por fim, uma última estocada, semelhante às encontradas no dorso, foi identificada no tórax.
O cadáver era de um caboclo de 30 anos. Aproximadamente 1,70 metros e pesava em torno de 80 quilos. Estava vestido para festa – de fato, segundo informações do funcionário da funerária, o finado estava em uma festa, na cidade de Poções, quando foi atacado a facadas. Como concluímos nos exames iniciais, na véspera havia se barbeado, cortado as unhas, possuía dentição completa e tinha os pelos pubianos depilados. Certamente aquele homem tencionava uma noite de alegrias e prazeres pouco antes de encontrar a morte.
Deve-se iniciar o exame dos órgãos internos pela cabeça – explicou o legista – pois, nesta parte do corpo, podemos saber o que originou a morte – mesmo quando a causa aparente seja outra. Um suposto suicídio pode ter sido um homicídio. Lesões no crânio indicam que a vítima pôde ter sido agredida antes de vir a óbito. Então, o que a principio era um suicídio, se configura como homicídio. Explicou o médico, esclarecendo o porquê da obrigatoriedade da necropsia.
Júlio – o auxiliar do legista - posicionou a cabeça do cadáver entre as duas hastes metálicas e apertou uma regulagem, em forma de rosca. Com um bisturi fez um corte, na parte superior do crânio, de uma orelha a outra. Afastou o couro cabeludo, descolando, com o auxilio de uma faca, o decido fibroso que liga o osso à parte interna do escalpo. O crânio foi exposto da testa até a nuca e lembrava, pela aparência, um melão maduro. O auxiliar empunhou uma serra – dessas utilizadas em construção, para cortar aço – e principiou um corte diagonal. Talvez fosse aquele o trabalho mais braçal que o assistente executava, via-se que era algo fisicamente cansativo. Vez por outra ele parava para tomar fôlego e, diante de olhares atônitos, esboçava um leve sorriso. Ao iniciar o segundo corte a serra, talvez pelo uso, se partiu, obrigando o funcionário a interromper o trabalho para a reposição do instrumento. Serra reposta, iniciou-se o segundo corte de forma que, ao se encontrarem, as incisões assumiram forma de V. Um instrumento similar a um formão foi introduzido nas fendas dos cortes até que se retirou uma talhada. O cérebro ficou exposto. Apesar dos ferimentos na caixa craniana o órgão estava intacto. Nenhum sinal de hemorragia - constatou o médico - pode fechar.
A etapa seguinte foi iniciada com um corte que se estendia da base da garganta à altura da virilha. Com uma faca o auxiliar foi descosendo tecidos, expondo ossos do tórax e, logo abaixo, entre a pele e os músculos que protegem os intestinos, uma camada de gordura amarela e espessa. Os ossos do tórax foram fendidos com a mesma faca, impulsionada por firmes pancadas dadas com uma ferramenta de metal. Um forte odor se sobrepôs ao já conhecido cheiro de sangue. Algo que lembrava digestão, um processo de decomposição de matéria. Mas não era só, tinha algo mais. Assim como peixe, frango, gado, ou qualquer animal, o ser humano ao ser aberto, exala um odor característico. Alguém falou em comer uma buchada, num bar conhecido. Não houve risos. Neste instante me arrependi de ter comido há tão pouco tempo, os dois sanduíches me pesaram, o ar carregado pressionava minhas entranhas, o suor escorreu, faltou ar...
Com alguns passos dirigi-me à sala ao lado e procurei uma corrente de ar. Permaneci uns 40 segundos, enxuguei o suor e, discretamente, dei dois pulos sobre os calcanhares. Retornei à cena a tempo de ver o legista apontar a causa da morte: a estocada no tórax –que aparentava ser de menor gravidade – causou um ferimento no coração. O médico explicou que, como não havia sinal de grande hemorragia em torno do órgão, aquela lesão foi a que vitimou o homem.
O trabalho seguinte consistia em fechar o corpo. Com uma agulha, parecendo com as que são utilizadas para costurar sacos de linhagem, o assistente teceu grandes pontos sobre a pele do cadáver. Imaginei que aquele trabalho poderia ser perigoso, o risco de contaminação é alto.
Terminados os trabalhos a ansiedade em deixar aquele recinto era visível. O impulso de sair daquela caixa de concreto, revestida de azulejos brancos e com singular atmosfera, nos impulsionava para fora. Queríamos ar puro.
Do lado de fora agradecemos ao médico legista e ao seu assistente. Após um começo de dia com tal trabalho o médico entrou no automóvel, falou algo com as crianças, engrenou marcha à ré e manobrou o veiculo, retomando seu sábado.
Transpomos calados os limites do prédio. Adiantei-me e disse que ficaria logo ali: em frente ao IML, no ponto de ônibus. Duas ou três vozes sugeriram que fôssemos, todos juntos, até à casa de Welder. Informei, sob insistências, que teria que ir para a universidade, porque já estava perdendo a aula de Comunicação e Mercado Regional. Permaneci no ponto enquanto via os colegas distanciarem-se em meio ao vai e vem de carros de uma manhã de verão.
Penso que poderia ter sacrificado a aula de Mercado. Deveria ter permanecido com o grupo. Naquele dia havíamos vivido uma experiência que certamente mudou a forma como cada um via a vida e a morte. Os nossos sentidos testemunharam o quanto somos perecíveis.
Em meio às atividades e pessoas, a tarde transcorreu tranquilamente. Com o cair da noite – momento em que as reflexões nos assaltam – vieram as lembranças do dia. Tomei duas doses de Campari. Mais duas depois. Parei de contar. Pensei em como aquele corpo, uma peça anatômica, algo rijo e sem expressão, já foi um homem. Com o último suspiro esvai-se a alma, a humanidade. A partir daí é apenas algo com contagem regressiva para desfazer-se. Direcionei meu turvo olhar nos que amo, na vida e na minha morte – talvez alguém abriria meu corpo, sob olhares entediados pela rotina ou, quem sabe, assistidos por uma platéia espantada.
Antes de dormir um colega, que divide aluguel comigo, me propôs: vamos fazer churrasco amanhã?
Vitória da Conquista, maio de 2007.
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