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sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Mocotó e buchada


O encontro foi fortuito. Nada me lembraria se não fosse o fato de uma amiga ter me ligado na manhã seguinte, logo cedo:
 - Você tava bebendo?
  Com a mente ainda povoada dos sonhos da recente madrugada balbuciei:
- Como assim?
- Diga, tava ou não? Do outro lado da linha a conhecida interrogava, com ares de preocupação. Tinha uma mescla de autoridade e carinho em sua voz, produto dos subsídios que ainda lhe dava de se intrometer em minha vida.
- Sim, bebi. Por quê? 
- Tá vendo? Parece que em Conquista nada pode ser feito sem que algum conhecido não dê notícias.
Entendi logo: no dia anterior, dentro do ônibus Vila Serrana/Uesb, havia encontrado com uma amiga comum.
- Hum, já sei: no coletivo, esbarrei-me com Laura que, sentindo o cheiro da bebida, lhe relatou.
- Sim, foi Laura mesmo. Sentiu no seu hálito o cheiro de álcool...  perguntou-me se você estava bem. Disse que sim, que você estava muito bem. Ela foi além: disse-me que achava que você estava passando por problemas e que talvez estivesse bebendo por causa disso.
- Ela não sabe de nada –disse eu -, estou bem, reafirmei. Ontem bebi por ocasião especial...
- Especial por que? Perguntou a moça, inquisitoriamente, como quem ainda mantinha direitos de censura.
- Ah, deixa pra lá...
Neste instante me envolvi na conhecida “espiral do silêncio”.
Vitória da Conquista, mesmo com seus trezentos mil habitantes, ainda conserva características de cidadezinha, muitos ainda são identificados como o filho de fulano ou a sobrinha de cicrana. É corriqueira a identificação do dono pelo carro.
- Você conhece o Paulo?
- Que Paulo, o que tem uma Mitsubichi?
- Não, aquele que anda numa Pagero.
Tais conversas e tipos de identificação são comuns e, não raro, a vida alheia é tema de calorosos debates. Dentro deste ambiente é que me vi: no relatório de Laura à minha amiga. Inútil seria dar mais detalhes à inquiridora. Certo que era uma quarta, também certo que, como não tenho horários pré definidos pra minhas atividades, nada de irregular em tomar umas em meio de semana. Naquele momento não quis entrar em detalhes: nada ajudaria explicar-lhe que, a convite de uma amiga que há muito não via, tinha ido ao bairro Patagônia. A localidade, que na década de 80 era tida como o lugar mais perigoso da cidade, atualmente se configura como um dos maiores bairros conquistenses e, por suas características particulares, constitui-se uma realidade à parte na dita urbe.  No bairro pode-se encontrar de quase tudo, o comércio é variado e na feira, entre legumes, frutas e carne, o cheiro de comida atrai fregueses às barracas onde se podem encontrar os mais variados quitutes. Foi em uma dessas que combinamos o encontro. Núbia havia ido para São Paulo tempos atrás, trabalhar em não sei no quê. Como uma estranha cujo tom de voz, olhar e gestos, ainda são familiares ela se apresenta: os cabelos pretos ainda eram cultivados, com o detalhe de que agora se podia notar um esmero maior. As unhas eram bem cuidadas e embandeiravam um discreto rosa. Na boca um batom carmim dava aos lábios uma disfarçada volúpia que, àquela hora da manhã, chamava a atenção dos que passavam. Pousei meus olhos naquela figura por um instante: estava mudada, as roupas atestavam e, pra balizar sua nova condição,  um leve sotaque paulistano!
- Moça, quanto tempo! Como vai a vida em São Paulo?
- Uma correria só. Trabalho o dia todo e, à noite, vou pro cursinho. Chego morta em casa, só dá tempo pra tomar uma ducha e desmaiar na cama. Em seguida, parece que dormi um instante e logo vem o despertador, me chamando pra labuta. O dia-a-dia só muda nos fins de semana quando a faxina – moro com minha tia e, além de ajudar financeiramente com as despesas da casa, cumpro minha quota na limpeza doméstica – quebra a rotina de trabalho.
- E a vida é só trabalho?
- Não, saio, uma ou duas vezes por mês.
- Me diga uma coisa, você sumiu, sem telefones e sem contatos na Internet. Foges?
Diante da saraivada de perguntas e de meu olhar fixo, a moça desviou o olhar, virou-se em direção a Dona Candinha – a proprietária do estabelecimento – e pediu outra cerveja. Encheu os dois copos, deu um grande gole no seu, encheu-o novamente, me olhou nos olhos e continuou:
- Olha Beto, pra você eu posso falar. Não fugi não, apenas não te encontrei pra despedir-me.
- Mas você poderia ter deixado contatos ou, com um pouco mais de tempo, deixar pistas na Internet.
Minha íntima interlocutora brincava com a espuma que se formava nas bordas do copo, como quem procurasse podar uma coroa do líquido dourado e gás carbônico que se formava e ameaçava escorrer para o ordinário pano que cobria a mesa.
- Sabe, tem momentos que é melhor não se despedir... Disse, tomando outro grande gole e desviando o olhar em qualquer coisa na feira.
- Como assim? Perguntei, com toda a autoridade que me foi conferida anos antes.
Não obtive resposta imediata. A moça parecia perdida entre os legumes e verduras que, em uma explosão de cores e cheiros, exibiam-se a dois metros de onde estávamos. Após alguns minutos de muda resposta e outros esvaziamentos de copos, a mulher à minha frente respondeu:
- Tive que sair. Na verdade quis sair. Na época não tínhamos mais contatos, você não trabalhava mais no bairro. Foi tudo tão rápido que nunca mais te vi, então não tivemos como nos despedir.
- Conte-me mais. Disse, olhando-a o mais profundamente que me permitiam meus negros olhos. 
- Prefiro dizer que essa cidade não nos oferece boas condições de vida. Terminei o segundo grau, empoleirei em um empreguinho, depois em outro, agüentei alguns desaforos e me desviei de propostas de patrões que estavam mais interessados em minhas pernas que no meu trabalho. Depois disso, passei algum tempo em casa, suportando as piadas de minha mãe sobre minha falta de contribuição nas despesas da casa ou, quando não era isso, a cobrança de um casamento com um homem “direito” que me sustentasse.
- Hum, estou pegando o fio da meada.
Àquela hora, depois de quatro cervejas, quatro conhaques e uma porção de mocotó, todos os dispositivos que limitavam as verdades haviam sido abolidos. Minha companheira continuou:
- Então, veio um rapaz... trocamos uns beijinhos e abraços. Esse moço era de São Paulo, de pais e tios amigos de minha família, passou uns tempos aqui e fez um grande e bem sucedido esforço de marketing para minha mãe e me pagou alguns X bacons e cocas colas. Após um mês dessa dieta, entrei em um ônibus comercial em direção à terra da garoa. Assim que desembarquei comecei a trabalhar. A família dele mora na mesma cidade que meus parentes, em Itaquaquecetuba, região metropolitana da Grande São Paulo. Fiquei morando com uma tia, em Itaquá e ele mora dois quarteirões adiante. Ainda namoramos, quer casar comigo.
- Então, estás bem encaminhada. É um cara decente?
- Sim, muito correto, até demais! Imagina que levo uma vida de casa pro trabalho, pra escola e depois pra casa. Ando cismada porque ele implica com meus estudos. Diz que não irei precisar, que ele poderá ganhar tudo o que necessitaremos. Sabe, desconfio disso, é um laço. Ando pensando que já cisquei demais embaixo desta arapuca. Pra você ver, ele tem ciúmes até de minhas amigas, quer vigiar meus telefonemas e, até essa visita que vim fazer à minha mãe, ele não queria me deixar vir. Só no fim do ano, quando ele poderia tirar férias e vir comigo, falou. Você acha que é justo? Será que mereço acabar assim?
-Bem, Núbia, que direi? Você sabe como é minha posição: creio que cada um deve escolher o seu caminho. Concordo contigo. Esta cidade, quando nos oferece um empreguinho, toma-nos a liberdade através da falsa segurança de uma assinatura na carteira de trabalho.  Quanto ao teu homem, bem, prefiro não entrar no mérito da questão... Ele não veio contigo?
-Não. Dessa vez chutei o balde e vim só. Gosto dele, mas me sinto sufocada pelas suas cobranças.
Minha interlocutora deu mais algumas goladas, como que pra recuperar o fôlego de suas confissões, e continuou:
- Olha, quer saber, tenho pensado que devo cair na vida: tenho emprego, sou bonita e não tenho que ficar sendo escrava da vontade de alguém. Ainda me prende certo sentimento de gratidão que tenho por ele e a cobrança da minha mãe, que acha que ele é o homem que eu deva casar.
- É..se ele ganhou sua mãe tem algum talento. Lembro que ela não me suportava. Quando estou por estas bandas, e cruzo com ela, percebo ainda a antipatia que nutre por mim e, quando está acompanhada, ouço-a balbuciar pra sua companhia: é esse o professorzinho... Não entendo o porquê de tal ranço e, no fundo, não ligo, relego ao caldeirão das incompreensões.
- É verdade, ela implicava com você. Mandava até minha irmã me vigiar. Parece que foi por causa de algumas coisas que você disse, sobre a gente conhecer e até freqüentar, terreiros de macumba. Comentaram muito, chegaram a dizer que você, além de ser macumbeiro, tava pregando em sala. Isso chegou aos ouvidos dela. Como boa cristã evangélica, ela me fez ouvir um monte, me proibiu de ter contato contigo – antes disso, ela até gostava de você – e passou a me vigiar.­­­­­­­­
- Ah, respondi, lembro disso! Surgiu depois de um comentário em sala de aula, era uma turma de terceiro ano do ensino médio e falávamos sobre Química Orgânica: alguém disse algo depreciativo sobre o Candomblé. Coisas absurdas: como falar que era culto a Lúcifer e que todos faziam feitiços maléficos. Diante da enxurrada de ignorâncias, não me contive e expliquei que era uma religião de matriz africana, que veio com os escravos negros e, por nossa colonização católica cristã, foi muito perseguida, até proibida. Daí os preconceitos e as deturpações que se cristalizaram ao logo da História. Disse mais: assim como estudávamos Química, não para sermos químicos, mas para não sermos ignorantes com relação à matéria, deveríamos conhecer mais sobre as diferenças e complexidades que formam nossa cultura, podíamos até, como forma de retirar o véu de ignorância que nos cobre sobre este tema, ler sobre, conversar com adeptos e, talvez, fazer uma visita a algum terreiro. Quanto a pregar, ah, faço pregações, mas contra a ignorância e o preconceito. De ser adepto – o termo macumbeiro é pejorativo -, bem, como sabes, não sou fiel de nenhuma crença organizada, mas isso não me impede de visitar templos, reuniões místicas ou festas de santos.    
- Eu te conheço e sabia que você não era dado a nenhuma religião. Então, como estava dizendo, estou na encruzilhada: gosto dele, mas quero viver minha vida. Não combinamos, ele é evangélico –quando te falei que saía era para ir a eventos evangélicos – quer que eu vá à igreja com ele, fiscaliza minhas roupas. Vou romper, me decidi. Só tenho 25 anos e não mereço me condenar a um futuro onde só encontrarei infelicidades. Também não quero levar vida dupla, isso é cozinhar a alma em fogo baixo.
Após estas últimas palavras Núbia pousou o queixo em uma das mãos, olhou no vazio por alguns instantes e, súbito, despertou.
- Aff, já bebemos cerveja demais, isso dá barriga e não quero voltar pra São Paulo fora de forma, já bastam as gorduras que comemos. Vamos tomar algo mais forte e de menor volume? Já é quase meio dia.
Entendi a deixa, fiz um sinal a Dona Candinha que, com a viva sagacidade de dona de bar, logo trouxe a conta: um rabisco de lápis em um papel encardido, desses que ainda se usam pra embrulhos.
- Deixa que pago. Faço questão e, além do mais, nosso dia ainda não terminou. Onde podemos comer algo mais consistente?
- Ah, respondi, tem Timóteo, talvez a melhor buchada da cidade, já fomos lá, lembra?
- Lembro, aquele perto do muro do aeroporto, não é isso? Só não sabia que se chamava Timóteo.
- Também não sabia. Sempre fui lá e não sabia o nome do dono. Fiquei sabendo há pouco tempo, quando fui com um primo e o vi conversando com o dono do estabelecimento.
Saímos da feira. Caminhamos algumas quadras e retornamos à nossa farra, desta vez recheada por doses de cachaça e porções de buchada, mocotó, arroz e salada de tomate com cebola. Até onde os vapores etílicos nos permitiam, lembramos coisas passadas e vividas e nos queixamos do que fizemos demais e do que deixamos de fazer. Após um par de horas, perambulamos tropegamente pelas ruas e vielas do Bairro Patagônia até desembocarmos nas imediações da rodoviária. Ao fim da tarde me despedi de Núbia, expliquei-lhe que tinha um compromisso na universidade e que era urgente encerrarmos nossas aventuras. Prometi uma visita, na primeira oportunidade que me levasse à cidade de São Paulo.
  Subi em um ônibus coletivo em direção ao centro da cidade onde embarquei em outro que me conduziu à universidade. Ainda povoado de lembranças do dia, resolvi minhas pendências burocráticas com a academia, peguei outro coletivo para casa, abusei da água quente que jorrava de meu chuveiro e me entreguei ao sono profundo, desses que a embriagues proporciona.
 No outro dia acordei cedo, com o dito telefonema do início da narrativa.


Vitória da Conquista, março de 2010.
Alberto Marlon

11 comentários:

  1. Gosto de seu jeito de escrever, mas a história me envolveu, assim como tantas outras que li de vc... não sei porque, mas tem um ar de comum, um ar de "deja vu" com minha história ou de outros tantos que conheço aqui. Fiquei com vontade de encontrá-lo, comer e beber rindo...

    Esteja em paz,

    E.

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  2. Mais uma prova de magnificas utilizações da rede virtual.
    Escrever é um dom. Há poucos como você.!

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  3. Oba, achei o cantinho que tava procurando. adoro cronicas e as suas são fantasticas. parabéns.

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  5. Grande Alberto,
    Prazer te encontrar por aqui.
    Mesmo conhecido como um matemático
    (professor), sinto, cada vez mais,
    que me identifico muito com as palavras,
    leituras, opiniões, idéias. Inclusive, de
    2008 pra cá, tenho procurado, constantemente, ligar os números com as letras. Gostei bastante
    do teu detalhismo. Só pensei uma coisa, os
    nomes são fictícios ou reais? (rs)Parabéns
    por estar realizando teus sonhos. Sucessos
    sempre. Abção!!!

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  6. Acredito que a geografia conquistense, principalmente nordestina, ela tem “destas coisas“ a poetisa do desencontro e do reencontro, na doce palavra feminina "saudade" que nos consolam e consomem em goles de alegrias e euforias das mesmices e das noites que amanhecem para labuta dos que ficam e da ansiedade e nostalgia das noites de quem voltam da terra prometida, sem goles e sem sonhos.
    confesso que estava esperando outro final, mas não é novela.

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  7. Marlon, seja sempre bem vindo ao blog!!! Volte sempre ao morenaeseumundinho!! Ah e quanto a história... minha vontade de conhecer Conquista só aumentou!! Abraços!

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  8. Caro Jornalista:
    Após jornada exaustiva em cima dos meus mais novos Projetos de Trabalho; e a divulgação dos mesmos na REDE, tive o grato prazer de experimentar a leitura agradável e envolvente das suas crônicas.
    Continue escrevendo muito, pois farei desse seu aconchegante espaço, o meu mais novo canal de entretenimento.
    Grande beijo.
    Admiro muito o seu talento.
    Larinha Gomes

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  9. Nasci em Conquista, mas moro em Sampa.Tenho um amor inquietante por essa cidade,alquimia de cores e sabores,amores que vêm e vão na era de aquarios,trazidos por Plutão,Júpiter e Vênus.Amo Conquita,de uma forma libidinosa e até perversa á flor da pele. Flor de Cactus

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  10. ...como diz um conhecido: "Conquista é uma cachaça..."
    :D

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