- Então o senhor gosta de bater em criança, não é?
- O que é isso, doutor, o senhor não pode me tratar assim.
- Ah, não! E como devo tratar um elemento que espanca crianças como você, hein!?
Enquanto a lei interpelava o acusado, expondo o delituoso e suas implicações legais ao seu praticante, Ari observava tudo do lado de fora da sala. A grande janela de vidro dava visão aos de fora, que podiam ainda ouvir entrementes algumas palavras pronunciadas com maior fervor.
- Deixe-me explicar o que aconteceu antes do senhor me julgar.
- Primeiro, eu não julgo ninguém. Os fatos falam por si só. E, segundo, acho bom o senhor ter uma boa explicação, pois o senhor já se encontra em maus lençóis.
Dali até o ponto onde esta história começa já se havia passado algumas horas. Ariosvaldo era uma dos filhos de Seo Gildásio. Nada se podia dizer sobre a conduta moral deste garoto, a não ser, é claro, aquilo que dos garotos julgamos inscritos dentro da normalidade e que, de certa forma, os põem todos em pé de igualdade.
Aos olhos dos outros, Ari e seus irmãos podiam ser considerados símbolos da moral de sua família. Seo Gildásio gostava disso e conduzia suas vidas para manutenção deste status social dentro da sua comunidade.
Operário de obra, Seo Gildásio levava uma vida muita regrada, porém honesta e sadia. Dois eram seus vícios, contudo. O futebol e a cerveja. Este último não chegava a ter a conotação lesiva que aos vícios inculcam, sobretudo porque os únicos prejudicados neste caso eram o “bolso”, que Seo Gildásio fazia questão de controlar, e a saúde dele próprio que, aliás, esta não é da conta de ninguém.
Enfim, uma vida regrada, mas que admitia alguns momentos de descontração particular.
No entanto, havia gente que não encarava desta forma.
- Muito me espantou a atitude de Gildásio, doutor delegado. Ele sempre aparentou ser um senhor bastante tranqüilo.
- Sei. A senhora o conhece bem, então.
- Sim! Como não! A vizinha dele é minha parenta de consideração, nora do meu ex-marido, sabe, e me deixa informada de tudo na comunidade. Disse até que sentiu várias vezes uma fumacinha de matinho queimado que vinha lá da casa dele.
Aquém do teor das conversas, Ari continuava com sua família do lado de fora da sala, enquanto Seo Gildásio esperava o seu momento em uma cela do distrito.
Era dia de domingo e por volta das 18 horas começaram a chegar gente, algumas algemadas, outras que acompanhavam simplesmente ou eram amigos e parentes dos algemados. Dona Luiza, mãe de Ari, reconheceu dentre os acompanhantes uma amiga dela do bairro.
- Cuide da sua irmã que eu já volto. E deu a garotinha para Ari segurar.
Envolto a tantos desconhecidos que tolhiam demais a sua paciência, Ari não pôde deixar de imaginar como seria bom estar em casa, curtindo o domingo que costumava curtir em família. “É tudo culpa minha”, pensou, olhando e acariciando o ralo cabelo da irmã que o suor fizera o favor de molhar.
O garoto percebeu quando a mãe fez menção com o braço em sua direção, sem, contudo olhá-lo, gesto este seguido por outro, este da amiga, que após uma rápida olhada em Ari, volta sua atenção para Luiza e balança a cabeça em sinal de desaprovação.
A senhora que estava na sala do delegado, Dona Bernadete, enfim sai do interrogatório, sem dirigir uma palavra para a cônjuge do acusado.
- Não sei por que chamaram esta mulher para interrogar. Ela mau nos conhece.
- É bem desse tipo que a polícia gosta, minha filha, uma opinião bem contrária, só pra dar pano pra manga.
Enfim, o acusado aparece para prestar depoimento. Caminha devagar e cabisbaixo, vestido uma camisa social semi-aberta que deixa a mostra em seu peito um colar de prata com uma cruz pendurada no pescoço. Antes de entrar, Gildásio faz um movimento lento com a cabeça meio que querendo identificar seus familiares, e eles estão ali, bem na sua frente. Neste momento, Gildásio fixa o olhar em seu filho que ainda tem em seus braços a pequena Paloma. O olhar de Gildásio é ininteligível. Com uma falta de expressividade como se tivesse perdido os sentidos. Seus pensamentos não estão voltados para aquela situação ali. Eles apenas contemplam aquele momento, os sons, os cheiros, as cores, o rosto de Ari. Este estado de torpor só é interrompido quando Luiza intercede o trajeto do marido, atrasando a linha natural da cena em alguns segundos, tempo suficiente para dizer “Tudo vai acabar bem, tudo vai acabar bem, viu?”.
À frente da porta que acaba de se fechar, a mulher forte, lutadora que junto com o marido construíram, a base de muito sofrimento, uma vida digna e respeitosa, desaba, e sem conter o desespero, abafa com as mãos as lamúrias e as lágrimas que, coberto o rosto, ninguém consegue ver.
- O senhor está em maus lençóis, Seo Gildásio. A lei é clara em relação o este delito que o senhor cometeu.
- Mas como pode ser clara, doutor, se ela mesma está causando tanta discussão por aí.
Este argumento surpreendeu um pouco o delegado que continuou, levantando da cadeira e apoiando as mãos sobre a mesa:
- E o senhor quer mais clareza do que esta: “É proibido dar palmadas em criança”. Foi o próprio presidente quem falou, não fui eu não. Você não se diz espertinho. Não vê jornal não.
Mais tarde, a tristeza de Gildásio se esvanece um pouco quando ele escuta narrarem os gols do Flamengo pela TV. A tristeza de Luiza também se vai ao ouvir o riso da filha deitada no berço. Ambos ligados numa mesma sintonia. Ela deitada na cama em seu quarto, ele deitado no chão de sua cela.
Álvaro Abreu*
* Álvaro é jornalista e cronista.
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