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terça-feira, 27 de abril de 2010

NA TRINCHEIRA ELETRÔNICA – PARTE 1

                                                  PRÓLOGO

- Alguém morreu na Rio Bahia.
Do outro lado da linha Aline Mattos, jornalista da TV Sudoeste, afiliada da Rede Globo, me passava mais detalhes sobre o ocorrido na BR 116, perímetro urbano de Vitória da Conquista.
Àquela hora da manhã, como de costume, tinha acabado de chegar à Central Filmes, locadora de DVDs onde Bárbara, então minha namorada, trabalhava.
- Que foi?  Perguntou a moça.
- Houve um atropelamento, parece que aconteceu agora. Vou lá fazer a matéria. Posso pegar a câmera em sua casa?
- Claro! Na parte de cima do guarda roupa. Leve baterias extras, pode ser que as que estão na máquina estejam descarregadas. Volta aqui ainda esta manhã?
- Sim, só vou lá, tiro as fotos, pego as informações necessárias e venho para escrever aqui mesmo. Beijo.
- Beijo.
Preocupado com o curto intervalo de tempo entre o ocorrido e a dissipação de informações  que sobrevém depois que os peritos do Instituto Médico Legal fazem seu trabalho, acionei a partida elétrica da Yamaha Fazer 250 e acelerei para a casa de Bárbara. Como um autômato, dei um oi a Dona Núbia, entrei no quarto, peguei os equipamentos e, depois de umas poucas trocas de marcha, estava sentindo o vento contrário sob a rodovia que corta a terceira maior cidade do estado da Bahia. Menos de um quilometro depois, avistei uma viatura da Polícia Civil. Encostei perto do veículo e, depois de constatar que seus ocupantes não eram investigadores, mas peritos do IML, tive certeza que estava no tempo certo. Alcançaria o local do acidente antes da perícia, de forma que chegaria a tempo de ver a tragédia alheia ainda fresca. Senti certa vergonha com tal raciocínio.
Nos limites da cidade, defronte onde hoje se encontra o Atacadão de Alimentos, cones sinalizadores e uma viatura da Polícia Rodoviária Federal isolavam metade da pista. Policiais rodoviários procuravam preservar o local e afastar os curiosos. Vez ou outra o vento, teimosamente, soprava os papéis que cobriam o cadáver. Um ou outro popular se aproximava e, com uma careta, desaprovava o destino daquela vida em flor enquanto, o agente rodoviário, recolocando o papel no lugar, tentava levar um pouco de pudor à trágica morte.
Identifiquei-me, pedi algumas informações e tirei algumas fotos. Com a chegada da perícia todo o teor chocante da tragédia tomou ares de processo mecânico, rápido e eficiente: Após calçar luvas de borracha, o funcionário do IML descobriu o cadáver adolescente, apalpou o crânio que, como conseqüência do forte choque, tinha consistência gelatinosa. Uma caminhonete branca, do Instituto Médico Legal, manobrou em marcha à ré, de forma que suas portas traseiras foram abertas e revelaram suas entranhas: vários compartimentos de fibra de vidro, usados para transportar os restos mortais dos que morrem nos centros urbanos.
Após alguns instantes não havia mais motivos para curiosidade popular, apenas uma mancha de sangue no asfalto quente marcava aquele fatídico lugar.  
Pilotei calmamente, procurando não pensar nas cenas anteriores. Retornei à locadora, Bárbara estava atendendo um cliente. Sentei-me em uma mesa, nos fundos do estabelecimento e liguei o notebook. Conectei na porta USB[1] o pequeno modem, capaz de enviar e receber dados através de sinal de celular e acessei a Internet. Após ligar o cabo da máquina fotográfica digital ao computador portátil, iniciei o processo de envio das fotos para o email do site. Poderia logar[2] diretamente ao servidor que hospeda o Núcleo de Noticias e postar a matéria dali mesmo. Mas, como sempre tive dificuldades para formatar as matérias no servidor, preferia sempre enviar o material para Carlos Henrique, mais conhecido como Caíque. Caberia a ele selecionar as imagens publicáveis, corrigir possíveis erros ortográficos e dar formato final na notícia.
Enquanto as imagens, depois de transformadas em bits e bites[3], viajavam através do espectro eletromagnético, tranquei-me em minhas reflexões e me pus na árdua tarefa de parto textual. Fiquei neste tipo de transe por mais de uma hora, vez ou outra era despertado pelos olhares e beijos mímicos que Bárbara me mandava à distância. Revisei o texto, fiz algumas correções e mandei o seguinte email ao Núcleo de Noticias:

    

    Caíque, aí vai o texto do atropelamento na Rio Bahia, veja uma chamada boa e, como sempre, dê uma lida para possíveis correções.

  “Era mais um dia de trabalho para o jovem morador da rua 16, casa 20, bairro Comveima, periferia de Vitória da Conquista. Como de costume, ajudava sua mãe na tarefa de recolher sobras de madeira em um terreno que está sendo desmatado, às margens da BR 116. Não imaginava que, por volta das 10 da manhã de sábado, 09/08, ao atravessar a movimentada Rio Bahia, em frente ao posto Novo Paraíso, seria despertado de seus pensamentos por uma estridente buzina.
  O jovem olhou para um dos lados e, impedido de mirar no sentido contrário por culpa do feixe de lenha que carregava às costas, foi colhido pelas dezenas de toneladas de um ônibus da empresa Salutaris, que ia no sentido Salvador- São Paulo. Não se sabe quais foram seus últimos pensamentos.
  Chocados pelo baque seco na estrutura de alumínio do veículo, motorista e passageiros  se horrorizaram pela cena que se apresentava no asfalto quente: no chão o adolescente Maciel Reis, 13 anos de idade, ainda conservava o calor da sua juventude em flor. O feixe de lenha ficou atrás, mas o CD que levava sob a roupa estava empapado de sangue e de massa encefálica que se esparramou sob o pavimento da estrada.
  Quando as primeiras autoridades policias chegaram, encontraram a mãe em choque. Passageiros e curiosos faziam volta junto ao jovem cadáver. O motorista, Lúcio Roberto Souza Lima (42 anos), nada pôde fazer para evitar a tragédia e, ainda sob efeito da forte emoção, prestou os primeiros esclarecimentos para a Polícia Rodoviária Federal.
  A pista foi interrompida e um desvio foi improvisado. Quarenta minutos depois uma equipe de reportagem da TV Sudoeste colhia informações e entrevistava testemunhas. Logo após chegou o pessoal do IML. A perícia foi executada, sem maiores trabalhos para os encarregados de recolher o corpo. Os populares foram afastados e minutos depois  alguns formulários foram preenchidos. O fluxo da pista foi restabelecido. Curiosos foram embora e a manhã ensolarada de sábado retornou ao seu esplendor.”


-Vou comprar alguma coisa pra comer e já volto, deixei o notebook lá atrás, disse para Bárbara. Você quer algo?  
- Escolha alguma coisa, já é quase meio dia.
Domingo é o dia de maior movimento na feirinha do bairro Brasil, como é mais conhecida a maior feira livre da cidade, mas, já no sábado, pode-se ter uma amostra do emaranhado de cores, aromas e sons que são nossas feiras-livres, verdadeiras amálgamas culturais. Ainda impressionado com as fortes cenas que noticiei, vaguei até encontrar uma dessas barracas que vendem comida. Uma churrasqueira, dessas de folhas de zinco, exalava um cheiro convidativo de churrasco. Sob a bancada de madeira duas panelas, uma de arroz e outra de farofa de feijão, além de uma vasilha plástica com salada de tomate e couve, dava o cardápio daquele refeitório sob lonas. Pedi quatro espetinhos, além de acompanhamentos. Pra levar, falei pra senhora gorda e sorridente que servia as porções.  Novamente pensei no menino atropelado e imaginei como a vida é efêmera e altamente sujeita ao encaixe dos acasos. Pedi uma lata de cerveja e me detive no amarelo da lata, do líquido no copo de vidro, da lona que, filtrando os raios solares, ficava mais amarela ainda. Goiabas, mamões e melões, a realidade tornara-se amarela...
Uma leve vibração, no bolso esquerdo da calça, me reconectou à realidade de chamadas telefônicas, horários e compromissos.
- Alô? Afonso?[4] E aí, quais as novidades? Mesmo? Mas quando? Onde?
Após a chamada, que não durou mais que um minuto, abri um enorme sorriso, paguei ao homem que tomava conta da churrasqueira, que deduzi ser marido da senhora gorda e simpática, peguei a sacola com as embalagens de alumínio, dessas utilizadas para levar comida e cruzei a Avenida Brumado em direção à locadora.
- Babi, disse eufórico, contendo a voz para não assustar os clientes que perambulavam pelos mostruários de DVDs. Acabo de receber uma ligação: Vou trabalhar na campanha municipal para prefeito.
- Pra quem, Esmeraldino?[5]
- Não, Guilherme Menezes![6]




[1] Universal Serial Bus - dispositivo que, pela sua praticidade, veio substituir os padrões utilizados em computadores para conexões de periféricos e acessórios.
[2] - Vem de “login”, termo utilizado em informática, referente ao ato de inserir nome e senha em um sistema para ter acesso a ele.
[3] - Bit, unidade básica de informação digital; bite combinação de bits que, em informática, compõem caracteres, cores e demais dados manipulados por computadores.
[4] Afonso Silvestre, coordenador de planejamento e programa de governo da Secretaria de Planejamento.
[5] - Esmeraldino Correa, coronel da Polícia Militar e professor que, na ocasião, estreou na política como candidato a prefeito pelo PTB, tendo como vice o professor universitário Geraldo Botelho, do PMDB.
[6]-Guilherme Menezes, então deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores. Médico, foi coordenador municipal de saúde entre 1984 e 1987, vindo a ser prefeito pela primeira vez em 1997, pelo PT. Em 2001 assumiu de novo a prefeitura e, sendo vitorioso nas eleições parlamentares de 2003, assumiu o cargo de deputado federal, deixando a cadeira do executivo municipal com o seu vice, o professor universitário José Raimundo Fontes, também do PT. A primeira eleição de Guilherme Menezes representou a ascensão das esquerdas em Vitória da Conquista, que faziam oposição aos candidatos da situação, tradicionalmente alinhados com o político Antônio Carlos Magalhães. 

Um comentário:

  1. Que triste a matéria.
    Existe uma linha tênue entre o relatar um fato e sentí-lo.
    Não deve ser fácil separar as duas emoções.
    Vc sente o horror da tragédia e ao mesmo tempo precisa se manter distante o suficiente para transformar um acidente em notícia. E tudo isso sem perder o lado humano. Complicado.

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