Muitas coisas passam a impressão de que são demasiadamente valorizadas. Outras, com o passar dos anos, parecem ter se resignado diante do fato de não lhes ter sido dispensada a atenção que mereceriam. Já se teorizou demais, por exemplo, sobre questões instigantes como a grande importância que há em Plutão ser ou não um planeta. Ou se as toneladas extras exibidas por Ronaldo diante de milhões de telespectadores na última Copa do Mundo influenciaram ou não em sua capacidade de movimentação dentro da pequena área. Enquanto a mídia e alguns pseudo-formadores de opinião entretêm o público com discussões desse tipo, as pessoas se vêem excluídas, pois há outras pelejas verdadeiramente mais importantes.
Uma grande instituição nacional, raramente mencionada nos grandes debates promovidos por quem decide o que a sociedade deve pensar e discutir, é o boteco. Ou botequim, bar, birosca, bodega, como queiram. E, por extensão, tudo o mais que nele estiver envolvido. Sua gastronomia, seu ambiente e, sobretudo, sua importância em quase todos os sentidos. Por falar em gastronomia, é impossível deixar de registrar toda a cultura própria que há por trás daquilo que se come nesse local. Enquanto beberisca alguma coisa, o sujeito não dispensa um tira-gosto qualquer. Aurélio Buarque de Holanda (que não é parente de Chico, este um notório “botecófilo”) poderia ter produzido um suplemento especial encartado numa das edições do Aurélio, em que só figurassem termos como pururuca, sarapatel, buchada, teiú, vaca atolada, tripa de porco, enfim. Essas guloseimas, fartamente favorecidas em matéria de calorias, constituiriam um capítulo à parte num provável estudo etnográfico do tema aqui tratado.Guardadas as devidas proporções, o boteco funciona como um consultório psicanalítico para os que não têm capacidade monetária suficiente para aconchegar-se num divã. Ou, para quem preferir lidar com divagações de ordem mística, ele pode servir como um confessionário (embora a absolvição desejada pelo confidente não seja exatamente regida por lógicas religiosas). Muitos homens dizem abertamente, entre os amigos, coisas que não diriam em casa, diante da esposa. Em alguns casos preferem aconselhar-se com o dono do bar.
Alcunhas poéticas – É necessário que sejam reconhecidos todos os méritos dessa figura ímpar, sábia, que é o dono de boteco. Movido pelas circunstâncias, inclusive contra sua vontade, ele naturalmente desenvolve certo instinto paternal. Torna-se paciente (até certo ponto). Se antes era decidido e idealista, acaba por se deixar dominar por um sentimento conciliador, politicamente escorregadio, tancredamente centrista. Um legítimo adepto da “lógica dos panos quentes”. Há algo de metafísico e até, de certa forma, religioso no modo como trata seus fregueses – ou fiéis, no caso. Seu estabelecimento, em certas ocasiões, vira palco de grandes romarias, e seu balcão se vê transfigurado num “muro das lamentações”. Afinal, há sempre um grande número de almas em busca de uma verdade, de uma revelação, mesmo que esses elementos abstratos e tão confortadores proporcionem uma paz efêmera. Mesmo que a almejada luz seja composta por etanol ou lúpulo (ou os dois). O universo botequinesco, se é que se pode chamá-lo desta maneira, acaba adquirindo um quê de sociedade secreta, com jargão e regras próprias. Os freqüentadores muitas vezes recebem aí nomes que acabam por acompanhá-los por anos a fio. Ou alcunhas poéticas como Macarrão, Pau Véi, Zé de Rôxa, Bufa-gás, Xebéu, Bode Preto e Terezo poderiam resultar de batismos que não fossem etílicos?
Em matéria de cultura e produção artística no Brasil, boa parte foi produzida em bares e botequins. Muitas das canções de Nelson Cavaquinho, grande gênio do samba, nasceram a partir de suas incursões pela boêmia carioca. Geralmente ele passava seguidas noites em claro, sempre de violão em riste. O jornal humorístico O Pasquim, um dos principais periódicos da imprensa alternativa, nasceu na mesa de um bar em Ipanema. Foi criado e produzido por gente como Jaguar, Ivan Lessa, Tarso de Castro, Sérgio Cabral (o pai), Ziraldo, entre outros. Seus colaboradores eram expoentes da fina flor da intelectualidade boêmia, nascida ou radicada no Rio de Janeiro. O compositor Chico Buarque, supracitado, não saia das noitadas no Antonio’s, lendário bar onde se reunia a esquerda festiva carioca durante os anos 70.
A birosca, a bodega, a venda, o boteco, esse universo botequinesco constitui uma verdadeira instituição nacional. Ele é parte integrante daquele grupo de elementos que estão em evidência, são continuamente utilizados, mas não há nenhuma preocupação em teorizar sobre eles. Mas talvez seja melhor assim, mesmo. Há quem diga que tudo o que é institucionalizado demais acaba se tornando chato e deturpado. Um grande número de intelectuais, artistas e outros formadores de opinião, em suma a inteligentsia nacional, adora freqüentar um barzinho. Se até hoje eles não decidiram sistematizar esse conceito, devem estar com a razão. Vai saber…
Gil Brito
Janeiro de 2010
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