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terça-feira, 13 de abril de 2010

É SÓ ALEGRIA...




  Era mais uma daquelas noites quentes e abafadas na capital baiana. Sábado, véspera do sagrado domingo na praia, descanso e vadiagem de todos que tributavam parte de suas vidas ao impositivo da necessidade.  O bar ia lotando à medida que os minutos passavam. Lá fora o clima era de festa. Ao som de berimbaus e atabaques uma roda de capoeira irradiava uma energia contagiante. Àquela hora, no fim de linha do Alto do Coqueirinho, bairro de Itapuã, poder-se-ia embriagar com o frenesi das ruas.




O bar estava completamente cheio – a fama dos caldos e aperitivos, além da cerveja sempre gelada, atraíam uma clientela cativa. Lembrando um turco, um homem gordo e de fartos bigodes negros ia e vinha no labirinto de mesas plásticas, de forma que servia a todos com uma eficiência capitalista. No canto esquerdo do salão, já próximo à portinhola de onde entrava e saía o suposto turco, uma mesa se diferenciava das demais: um rapaz, aparentemente encapsulado em seus pensamentos, destoava da maioria festiva e imersa na algazarra dos vapores etílicos.
  A goles de náufrago Cláudio esvaziava sua Kaiser. Sobre a mesa uma tigela com caldo de sururu quente contrastava com a garrafa de bebida gelada. As lembranças de instantes antes o faziam pairar acima daquela atmosfera densa e morna. Lembrou-se de Luiz: um dos poucos que ele tinha um real prazer de, entre caminhadas pelas ruas e praias, falar sobre as mais variadas coisas. O amigo já chegara à casa dos cinqüenta. A diferença de idade os aproximava como mestre e aluno, alternadamente – Luiz, trinta e cinco anos de capoeira, tinha um grande interesse em entender como funcionava computadores e os programas que fazem as mais variadas coisas, e Cláudio, depois de ter abandonado o quinto semestre de Ciência da Computação, queria deletar toda a paranóia de uma vida sob pressão através de uma realidade alternativa de dança cantos e instrumentos. 
  Algumas gotas de óleo com pimenta no conteúdo pastoso da tigela de barro, duas colheradas que vieram pedaços de marisco cozido, um largo gole de cerveja e Cláudio continuou com seu flashback dos acontecimentos da tarde: recordou que depois de subir por uma viela, muito inclinada, fora com o amigo a uma festa de aniversário em um sobrado de dois andares, pequeno e baixo. A comemoração acontecia na parte inferior. A alegria dos convivas veio como um bálsamo para sua alma machucada e acompanhou cada foto que o amigo tirava com um interesse particular – para Luiz a fotografia, além de hobby, era uma fonte extra de renda. Rememorou quando saíram, descendo pelos mesmos degraus e em seguida subindo outros até desembocar na avenida principal. Ainda podia-se ver um resto de dia no poente quando Luiz fez o convite para tomar uma ou duas cervejas preta – era só isso que costumava beber. Entraram no bar de Celma –uma negra que, hostil à passagem do tempo, lembrava em traje e trejeitos que ainda podia fazer seus feitiços femininos – e pediram uma Caracu. Após o terceiro gole e um discreto arroto Cláudio puxou conversa:
 - Sabe, véi, gosto muito de Salvador. A alegria dessa gente, o sorriso estampado no rosto. Dão duro mas não param de rir e festejar. Pra mim isso é que é vontade de viver.
  - Sim, complementou Luiz, é bom a gente ver alegria de pessoas tão sofredoras. Sabe aquele rapaz do aniversário, o dono da casa? É um guerreiro. Todo dia vende bolo e salgado na praia. Dá duro pá porra e mesmo assim só vive alegre, isso é bonito camarada, isso não tem preço e não depende de riqueza.
  - É... É o sentido da vida, nesses momentos percebemos como tudo pode ser belo... O baiano é um povo alegre...
   - É só alegria... Complementou Luiz, citando uma expressão local, muito usada pra dizer que tudo vai bem.
   Caminharam em direção ao fim de linha, local onde os ônibus retornavam em seu trajeto. Cláudio experimentou uma dose de vergonha ao pedir dez reais emprestado. Tinha raiva não da miséria de não ter alguns trocados, mas por precisar destes para se embriagar. Sentia que era moralmente incorreto, aproveitar da boa vontade dos amigos para se envenenar. Mesmo sendo estes necessários para um alívio momentâneo. Precisava daquilo. A dor moral aumentou à medida que se aproximavam da pracinha do Alto do Coqueirinho. O turbilhão de imagens, rancores e sofrimentos lhe assaltavam os sentidos. As violências sofridas, a falta de dinheiro, a vontade de voar aliada à consciência de não possuir asas, enfim, o que quer que lhe aferroava o coração ia e voltava como as marés. Entretanto, naquela tarde, algum duende perverso tinha empurrado o espinho mais fundo.
  Com tais lembranças Cláudio pensava em como pode ser forte e repentinamente frágil a alma humana. Sabia que seus sofrimentos eram insignificantes em relação à humanidade mas, naquele momento, parecia que toda a dor do universo tinha sido canalizada para ele.  O cheiro forte de cerveja choca, e a algazarra dos que já haviam ultrapassado seus limites de consumo de álcool, o fez emergir do tanque de recordações e sentimentos em que estava mergulhado para retornar àquela Babel de mesas, brindes e conversas incompreensíveis.
  - Me traga mais uma, disse timidamente ao suposto turco que passava naquele momento. Enquanto bebericava a sua quarta cerveja simulou o que seria dali pra frente. Sentiu medo. Fantasmas bem conhecidos o aguardavam: a casa vazia, os lençóis, a cozinha, a televisão desligada... A partir daquele dia estava sozinho, sabia disso com antecedência, tinham acertado. Era esse o caminho – ao menos o que cabia naquele momento. Entre ter consciência do que é preciso e a resignação ante o inevitável há um grande abismo – e como é difícil transpor qualquer abismo! É como ter que amputar a perna para a gangrena não tomar conta do corpo, mesmo sem o membro amputado pode-se, às vezes, senti-lo.  Mas que merda de vida, resmungou baixinho, já meio ébrio. Muitos vivem com muito menos que eu, mesmo assim me sinto como um miserável.     “Toda dor vem do desejo de não sentir dor”. Onde foi que li isso mesmo? Mas, como não desejar se queremos tudo que nos salta aos olhos? Talvez em um deserto qualquer, morrer desidratado sem sentir sede, ou negar-se a beber água... Quem sabe uma bala perdida, em um beco escuro, sem estampido, nem origem, tudo muito rápido...
  Ia nessa linha de devaneios quando algo acontece: alguém chama a atenção de todos; um velho, já em idade avançada, maltrapilho, com um saco de petrechos às costas, dirige-se ao balcão e balbucia algo em direção à cozinha. Após breves instantes, já com seu pote plástico, desses de margarina, passa por entre as mesas, roçando as costas de alguns fregueses.
  - Essas disgraça! Vem cum essa pôrra suja passá na gente. Vai morrê pra lá, véio. Berrou um negro, de ventre avantajado.
  - Hoje num morro. Gritou o mendigo, em tom de discurso, com um sorriso que deixava à mostra a boca desdentada. Passei o dia todo sem cumê, continuou, venci mais um dia, todo dia venço. Quando era moço, lutava por mim e meus quatro fio. Óji tão crescidu, num pricisam mais deu. Tão pra Sum Paulo. Intão vou assim, até o Nosso Sinhô Jesus Cristu querer. E sorriu, exibindo em todas as direções a gengiva desguarnecida, como quem espanta demônios com a cruz.
  Após a breve interrupção todos voltaram à normalidade de suas palestras etílicas. O cliente ofendido virou-se para sua mesa como se nada tivesse ocorrido. Um observador mais atento poderia ver que o rapaz solitário do canto direito observava o maltrapilho com particular interesse. Ver-se-ia também que sua expressão mudara, um esboço de sorriso desenhara-se em no contorno de sua barba por fazer.
  Cláudio sorria. Olhou mais uma vez para o mendigo, que já estava na rua. Lembrou de quando tinha cinco anos. Riu mais uma vez, desta vez de forma sonora. Alguns se juntaram a ele, imaginando-se cúmplices de alguma pilhéria com o andarilho. Mal sabiam eles que Claudio ria de si mesmo. Zombava de seus temores. Ria pro amanhã, dando um grande sim às dores e prazeres da existência. Naquele momento, saltava de sua trincheira e abria os braços às setas do porvir.
   Três horas da manhã, já em casa, Cláudio retomou as últimas lembranças do dia. Veio-lhe as palavras e o sorriso do mendigo. Os fantasmas tinham sido exorcizados. No limiar da inconsciência ainda pôde ouvir as palavras de Luiz: “É só alegria”!

Um comentário:

  1. Obrigado pelas sabias palavras... Vc disse tudo que queria resumir pra mim mesmo...rsrrs A rotina enlouquece!!!!

    Ah!!! Adoro sua escrita!!!

    Bjusss

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