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quinta-feira, 19 de maio de 2011

Carne e chocolate


  Que me perdoem os vegetarianos, mas não dispenso os prazeres da carne. Em alguns pontos sou à moda antiga: o homem, em sua trajetória evolutiva, sempre conviveu em paz com outros animais, desde quando estes permanecessem em seus rebanhos. Segundo o evolucionismo, e remontando aos primórdios, um dos fatores que explicam a nossa grande massa encefálica é a ingestão de grande quantidade de proteína animal. Dentro desta ótica, e obedecendo à minha própria evolução, delicio-me particularmente com carnes vermelhas, sejam cozidas, fritas ou assadas. Devo também dizer que aprecio aves e frutos do mar, pena estarmos um pouco longe do litoral... A churrascaria, para mim, é uma espécie de templo onde algum deus pagão nos farta de picanhas, alcatras, maminhas e outras partes do boi, ou porco, a depender da disposição dos que servem a mesa. Nos dias que não posso frequentar meus templos favoritos – a vida de aspirante a escritor e jornalista desempregado não contempla certos gastos – recorro aos já conhecidos “espetinhos de gato” ou aos chamados “churrascos grego”, opções baratas para um carnívoro inveterado e de poucos recursos.

  
  Havia levantado cedo, tomado uma xícara de café amargo e saído para a rua na esperança de encontrar algum empresário que, traindo os secos princípios capitalistas, cultivasse em seu espírito alguma fração de boa vontade com as letras, sobretudo as de um desconhecido que lhe bate à porta. Circulei. Educadamente me receberam, ouviram minha história e disseram não. Interessante a visão dessa gente: podem até patrocinar um evento ou algum artista, desde que esse já venha carregado de uma boa dose de fama ou que seja “de fora”. Aos olhos desses – nada mais que um reflexo da maioria –, tudo que é importado merece valor, não titubeariam em colocar muitos níqueis na obra de alguém que venha do sul do país ou dos grandes centros. Resquícios do nefasto pensamento colonial no qual o que era estrangeiro necessariamente era bom. Desprezávamos nossos saborosos e frescos frutos para importarmos nozes secas de países frios e distantes. É a lógica do camponês que, a despeito das necessidades da família, serve sua melhor comida para o grande fazendeiro que está de visita e logo vai embora. Assim como o pobre diabo que se esquece de nutrir bem os seus, para que estes revigorem e façam a pequena propriedade produzir, os grandes da nossa terra se esquecem que, incentivando os locais, agregarão valor e contribuirão para  encher o reservatório de autoestima da região, o que, no curso natural das economias, incrementa as relações de consumo e a circulação de recursos. Abundancia cultural é indício de que a economia viceja.
 
  Com estas reflexões percorri o centro da cidade, sob um sol que abrasava os caminhantes. O sistema fisiológico clamou por alguma substância, o café forte, e as siriguelas do início da manhã, mostraram-se insuficientes para prosseguir a jornada. Nas proximidades do Mercadão, paro em uma dessas barracas de churrasco grego com uma máquina de refresco. Maracujá, deduzi. Ao lado, um enorme espeto, na vertical e rodeado de brasas alimentadas por um botijão a gás, girava, exibindo carnes e gorduras que exalavam o cheiro de assado à medida que se iam desidratando. Dentro do quiosque um rádio trazia a pregação de um pastor evangélico. Pedi um sanduíche: sem salada, nem catchup ou maionese, apenas pão e carne. Enquanto esperava o que atendia preparar o lanche de dois fregueses que já aguardavam, prestei mais atenção ao ambiente: eram dois funcionários, um cuidava do espeto e outro se encarregava de servir refrescos e receber o dinheiro. No intervalo dessas operações lia a Bíblia, balbuciando versículos em tom baixo ou interpelando seu companheiro e algum cliente que demonstrava interesse.

 - Olha aqui, disse o encarregado dos refrescos, colocando o dedo em algum ponto de uma página do Livro Sagrado, tá tudo escrito: no fim dos tempos haverá guerra, fogo, terremoto e o mar vai engolir a terra. Isso tudo que tá acontecendo no mundo é sinal de Deus. Veja lá no Japão, um montão de mortos. Tá tudo na Bíblia, “os que crêem viverão”. Quem não aceitar a palavra do Nosso Senhor Jesus vai perecer no fogo e na água.

 O homem do “churrasco grego” disse estas últimas palavras com o livro em riste, não só para o colega, mas para os seis fregueses que aguardavam o sanduíche ou já comiam o pão com carne. Os que estavam ao redor assentiram com a cabeça. Quando nossos olhares se cruzaram, fulminei-o, com a carga de energia que se acumulava no fundo de minha retina. Os estudiosos do comportamento têm uma definição para formas de comunicação que se dão no âmbito do olhar e dos gestos: sinais não verbais. Através do meu olhar, aquele homem percebeu que alguém na platéia não gostara de seu discurso messiânico. Talvez tenha deduzido, a despeito de minha aparência tupiniquim, que eu teria algum parente entre os milhares de mortos e desaparecidos na Terra do Sol Nascente. Da mesma forma abrupta que começou a falar, calou-se. 

Paguei minha despesa. Cruzei a rua e me abriguei na sombra das barracas do Mercadão.  Ainda com o gosto amargo me impregnando o espírito, causado pela opinião daquele homem sobre a recente catástrofe no Japão[1], passei pelas ruas de cereais, açougues, lanchonetes e barracas de bugigangas, em pouco pisava a calçada do Teatro Carlos Jeohvah. Sempre tentando me esquivar dos raios de sol, cavando uma sombra “aqui e outra ali”, desemboquei na Praça Nove de Novembro. No pequeno largo um artista de rua estreava seu número: em um salto, mergulhava por entre um aro de bicicleta, no qual havia facas encravadas, de dentro para fora, de forma que aquilo exigia uma execução perfeita, sob pena de se ferir em uma das lâminas. Prometia também comer vidro. Juntei-me aos curiosos que faziam roda em torno do homem das peripécias incríveis e assisti seu show por alguns instantes. O sol escaldava! Não esperei para saber se o showman pedia dinheiro ou vendia alguma coisa, precisava seguir adiante, pois planejava bater à porta de mais uma empresa. Passei por alguns artesãos, sentados ao sol, pacientemente tecendo seus trabalhos. Olhei para a praça: artistas, artesãos, funcionários do comércio e gente apressada. O mundo é diverso! Novamente me veio à lembrança a tragédia no Japão e, a reboque, o homem do churrasco grego. Mais uma vez vi, e compreendi, como a espécie humana é múltipla e, talvez por isso, dividida. As diferenças não são problemas, o fundamentalismo poder ser. O ver o mundo apenas com seus olhos e não aceitar a visão do outro. Este não admitir o diferente é a origem de todas as guerras e de toda a crença organizada. O meu deus é melhor que o seu, a minha religião expressa a verdade divina... Muitos empunham o escudo e o gládio de suas doutrinas e, menosprezando o caráter humano inerente a todos nós, condena o outro, quando não aqui na Terra, em outro mundo. O discurso daquele homem – na verdade não é dele, mas de grande parte das religiões ocidentais -, no qual afirma que a origem das tragédias naturais é obra de um deus que “se vinga” daqueles que não o seguem é algo, em sua essência, desumano, ou melhor, anti-humanista. Às vezes me pergunto se as crenças organizadas têm feito mais mal do que bem à humanidade.
 
 Parei de pensar em deuses e religiões enquanto avançava pelos primeiros metros da Avenida Siqueira Campos.  Lembrei-me de uma conhecida que tinha um pequeno negócio e decidi visitá-la como última tentativa do dia.

  Diante do estabelecimento fechado toquei a campainha. Um instante depois a porta se abre e uma expressão amável me saúda.

- Olá!

- Oi. Pensei que já estivesse aberto. Vim aqui lhe falar sobre um projeto, se tiver um tempinho...

- Ah, claro. Abrimos a partir das duas da tarde, apesar de começarmos a trabalhar cedo, com o preparo dos produtos, na cozinha. Venha, vamos entrar.

  O lugar era pequeno, mas bem decorado. Tons de rosa e branco predominavam nas paredes e nos móveis. Duas pequenas mesas, redondas, forradas de toalha vermelha e guarnecidas de bancos de metal, com assentos estofados na cor branca, deveriam servir de pouso aos frequentadores. À frente, um balcão envidraçado exibia bolos, guloseimas e, vindo da porta que dava acesso à cozinha, um doce aroma convidava a provar aquelas iguarias. Quadros na parede e outros detalhes, como um telefone antigo e recipientes de vidro, usados para por doces, davam a impressão de um retorno ao passado. “À moda vintage, um estilo de decoração que destaca utensílios e coisas antigas”. Explicou a dona do estabelecimento, diante de minha curiosidade pela decoração do ambiente.

- Gostei daqui, comecei. Já tinha ouvido falar deste novo espaço em Conquista e fiquei curioso para conhecer.

- Abri há pouco mais de quatro meses, respondeu minha interlocutora. A cidade estava precisando de um lugar onde poderia se tomar um bom café e comer doces finos.

- Tem tido retorno, do ponto de vista empresarial? Perguntei, com ares de um consultor de negócios. 

- Temos aumentado a clientela, aos poucos. Como primamos pela qualidade de nossos produtos, os clientes têm voltado. Acredito que, pelo crescimento da cidade e o desenvolvimento de um público com um gosto mais sofisticado, a tendência do negócio é se firmar.

- Certamente. Respondi, enfatizando minha concordância através de um gesto afirmativo com a cabeça. É bom que a cidade tenha muitas opções, inclusive gastronômicas. Por meu turno, continuei, estou tentando lançar um livro – retirei o original da mochila e a entreguei – e busco apoios culturais. Estou editando por conta própria, por ser o que me imagino fazendo. Acredito no princípio da autodeterminação pessoal, sobretudo no que tange a ofícios e profissões. Formei-me em jornalismo, mas ando desiludido com a área, principalmente em nossa cidade, de forma que, penso eu, poderia editar e publicar obras literárias. Sei que é difícil, principalmente para pequenas empresas, fazer uma sangria em seu capital, mas, como vou imprimir em uma gráfica rápida, o patrocínio pode ser em forma de papel ofício. Em contrapartida, ofereço a veiculação de sua marca na capa de fundo do livro. A tiragem será de mil exemplares.

  A jovem empreendedora deu uma rápida folheada, brindou o momento com um discreto sorriso e continuou:

- Poxa! Legal! Fico feliz com iniciativas como essa! Olha, as coisas não estão fáceis. Estamos começando e temos segurado o negócio por paixão ao que fazemos. Ainda bem que meu marido é designer, cuidou de todo o layout e divulgação. Mas aprecio a sua iniciativa. Sei como é isso. Quanto de papel você precisa?

- 5 caixas, cada uma tem 10 pacotes de 500 folhas.

- Hum... faz o seguinte, passe aqui na semana que vem. Vamos apoiar sim, dê-me uns dias para providenciar o que pede.

- Ótimo, respondi, sem disfarçar a satisfação. Passo aqui semana que vem.

Dei mais uma olhada ao redor. Havia, sobre o balcão de vidro, alguns exemplares daquela alquimia de cores, cheiros e sabores. Embalados em sacos plásticos e atados por um laço de fita vermelha, um me chamou a atenção, parecia uma barra de chocolate apesar de, depois de um olhar mais apurado, parecesse ser bem mais macio que um tablete de cacau. 

- Como se chama? Perguntei, assumindo toda minha ignorância em assuntos de doces finos.

- Brownie, respondeu a jovem Gourmet. É um bolo úmido, feito com chocolate e nozes.

- Vou levar um.

Paguei, me despedi e, como tinha um livro para entregar na biblioteca da Uesb[2], embarquei em um coletivo. Após uns vinte minutos já estava na instituição, sentado em um banco na companhia de uma amiga. Dividimos o brownie. Uma fria brisa de outono balançava os cabelos da moça enquanto comíamos o doce. Divaguei. Mesmo em doce companhia, por alguns instantes, entrei em minha cápsula e a direcionei às primeiras horas daquela manhã, às notícias sobre o Japão, os fundamentalismos e iniciei uma descida pela ladeira que conduz aos pensamentos tristes. Por momentos enveredei por este caminho. Depois de alguns passos para baixo parei, tal qual um asno que subitamente empaca no meio da estrada. Não, raciocinei, devo pegar outro atalho e voltar a subir. A despeito dos ódios incrustados nos diamantes das verdades sagradas das religiões e sociedades, a vida é para ser vivida, aproveitada e, para isso, podemos largar, sem o menor receio, as benesses e angústias de uma vida financeiramente diferenciada pelo doce viver de ser o que se é. 

O desafio diário é nadar no mar de incompreensões e mesquinharias.

Voltei de meu pequeno transe com o sorriso de minha amiga e o gosto de chocolate e nozes na boca.

Alberto Marlon


[1] Após um terremoto 9 graus na escala Richter, seguido de uma onda gigante que varreu uma região inteira, vazou radiação da usina nuclear de Fukushima, no nordeste do Japão.  Estima-me (abril de 2011) em 27 mil o número de mortos e desaparecidos com o tremor e o tsunami, e ainda não se sabe os danos que a radiação irá causar na população e no meio ambiente.
[2] Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. 

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