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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Diários de cinema - parte II

As antigas ruas de pedra estavam cheias de gente. Por todos os lados um vai e vem festivo. Barracas, mulheres com sacolas, animais de carga e veículos. Nos bares a beberança já havia começado e, à medida que a manhã avançava, o fluxo de copos e garrafas se intensificava. A feira da cidade de Mucugê é um espetáculo de cores e aromas. Era neste cenário que iríamos realizar a penúltima exibição dos filmes. O local designado era a sala de auditório do CRAS (Centro de Referência de Assistência Social), vizinho ao prédio da Prefeitura. As janelas foram fechadas – para criar um ambiente escuro, mais propício à exibição cinematográfica – e, após iniciada a sessão, foi vetada a entrada de mais pessoas, tal era o número de espectadores. 
Findado o compromisso em Mucugê, arrumamos as bagagens e, mais uma vez na carroceria do Toyota, tomamos o rumo do Vale do Capão.



                                                                            IX

Encravado no centro do Estado da Bahia, município de Palmeiras, o vale do Capão é uma localidade cujos principais atrativos são a paz que se desfruta, a proximidade de pontos onde a natureza se apresenta com toda a sua beleza e a sensação que o visitante tem de estar em um local longe das correrias da cidade. É procurado principalmente por ecoturistas, mochileiros e toda sorte de gente em busca de paz e elevação espiritual em contato com a natureza. Pelas ruas, quase sempre de terra batida, pode-se encontrar gringos das mais variadas nacionalidades e brasileiros de vários cantos do país. A diversidade cultural é singular; à noite, quando todos retornam das trilhas, a pracinha – espécie de centro comercial da vila – ferve. Em esteiras, ou panos estendidos sobre as calçadas, artesãos expõem seus trabalhos e músicos cavam a subsistência do dia seguinte. Como em todo lugar, existem bares onde a popular cerveja flui e destrava as línguas. Há também uma igreja católica e uma construção arredondada, coberta de sapé e rodeada de bancos de cimento, formando uma espécie de arena. O chamam de centro cultural e é lá onde se realizam shows e eventos artísticos.

O vale é cercado de lendas. Uma das mais interessantes é sobre o Morro do Pai Inácio – um dos destinos dos adeptos de caminhadas. Segundo a memória popular um escravo, chamado Inácio, havia se apaixonado pela filha do seu senhor, um dos coronéis da época dos garimpos. Descoberta a paixão proibida o coronel condenou o escravo à morte. Inácio fugiu, com os jagunços do coronel em seu encalço. No alto do morro e acossado por seus perseguidores, Inácio encontrou-se sem saída: de um lado o precipício, morte certa, de outro os asseclas do coronel, sinônimo de doloroso fim. O escravo não hesitou: jogou-se ao precipício e, valendo-se de um guarda chuva, presente de sua amada, planou até o solo. Segundo outra versão, Inácio havia se escondido dos jagunços, em uma pequena caverna, e fugiu para muito longe. Estórias à parte, a formação rochosa ficou conhecida como Morro do Pai Inácio.

Após rodarmos por mais de duas horas em uma empoeirada estrada, chegamos ao Vale do Capão, derradeiro ponto da Mostra Pati. Exaustos e com a mente fervilhando com os acontecimentos dos últimos dias, separamo-nos; os que moravam no Vale, como Caio, Léo e Denise, foram para suas casas. Ficamos – eu, Joice e Milena – hospedados na casa de Denise – um charmoso chalé, pequeno e aconchegante. Mesmo sabendo que estaríamos de folga no dia seguinte – a última exibição seria no domingo, no centro cultural – dormimos cedo.

O sábado veio como a maioria dos dias no Vale: uma leve bruma que foi se dissipando à medida que o astro rei ia subindo aos céus. Estávamos de folga e o dia era dedicado a passeios, ou o descanso puro e simples. À noite bebemos cerveja e fizemos uma tour pela praça lotada. O dia passou rápido, como um filme que desejamos que nunca acabe mas que, à nossa revelia, finda.

                                    
                                             X

Feira. Na palavra, nenhuma letra se repete. O "i' no meio, como um divisor, a ditar os limites entre os dois pólos da grafia. Além desta inútil curiosidade momentânea, as feiras são ambientes onde, antes de tudo, exercita-se o olhar, no mais extenso sentido. Domingo é dia de feira na Vila do Capão. Além das tradicionais barracas de frutas, legumes, cereais, carne e de ser rodeada por botecos, onde o ranço de suor e bebida é potencializado pelo calor da manhã, a feira do Capão tem suas particularidades: fui atraído por uma banquinha, onde podia-se comprar cristais, “energizados”, como explicava a vendedora, em um portunhol incisivo. Mais adiante, uma mãe passeava com duas crianças, nada a notar se não fosse os trajes das mesmas, uma espécie de sari indiano. Em um dos bares uma moça tomava cerveja e, a julgar por sua constituição física, pousou de algum país escandinavo. Aos seus pés, tranquilamente, um assustador cão da raça rotwailler parecia pouco se importar com o fluxo de pessoas que entravam e saiam. Perambulei por este caleidoscópio de almas, cores e cheiros enquanto não chegava a hora do almoço.

Encontrei Denise e Joice por volta das 13 horas. Comemos em um estabelecimento próximo à feira. Lugar pequeno, lotado àquela hora, mas que compensava pela boa comida. Após o almoço me separei das meninas e segui a programação: haveria um jogo de futebol – evento tradicional na localidade, cujos participantes, jogadores e torcida, eram devotos fieis do sacro compromisso futebolístico.

Alcancei o campo depois de uma boa caminhada. Além das cercanias da vila, alcancei um platô, de onde se podia ver quase toda a extensão do vale. O céu, de um azul absoluto, preenchia a parte superior do quadro e se encerrava nas montanhas. No grande retângulo de terra batida, aplainado à força de potentes tratores, os jogadores iam se posicionando, com suas camisas laranja e verde, de tal forma que todo aquele conjunto visual, aliado à exuberância das cores da paisagem, causava forte impressão na visão. Em campo, Léo e Caio demonstraram um vigoroso pique, principalmente depois dos dias caminhados no Vale do Pati e da rotina cansativa nas cidades por onde a Mostra passou. Mesclados nas duas equipes, com suas barbas e cabelos longos - muitos dreadlocks - havia dois tipos distintos de jogadores: os “vovôs”, que moravam há mais tempo no Capão, e os meninos, aqueles que chegaram depois. Não percebi uma delimitação exata da linha que separa os moradores velhos dos novos, notei apenas um respeito pelos “vovôs”, e um sentimento de coesão entre todos os membros da comunidade.

Naquela noite seria o encerramento da Mostra Pati, no Centro de Cultura, como já dito, localizado no meio da praça principal. À tarde começamos a montar a exposição fotográfica. Os registros, alguns em preto e branco, outros com cores vivas, nos remetiam a alguma saga, perdida no tempo e no espaço. Por momentos, enquanto fixava as molduras no chapisco que revestia os blocos de cerâmica, lembrei-me de Aníbal Barca, o grande general cartaginês que, 300 anos antes de Cristo, cruzou os Alpes e os Pirineus com um exército de elefantes, pondo o Império Romano de joelhos. Nas fotos, em minha fantasia carente de grandes feitos, pude ver temerários expedicionários a cruzar despenhadeiros e vales traiçoeiros. Tal foi minha imaginação ao travar contato com registros em papel dos nossos dias anteriores, àquela altura tão distantes, mas como se tivessem acontecido há dois mil anos atrás. Equipamentos checados e... pronto! Estava iniciada a nossa última sessão, ao menos neste fragmento de nossas vidas.

Fui assaltado pelo sono. De forma que dava pequenas cochiladas, intercaladas por sobressaltos de retornos à consciência. Os dias de estrada pesaram... Fui desperto de meu torpor pelo fim da exibição e pelos acordes da banda Queimada Controlada.  Estava terminando nossa jornada ao som do bom reagge da chapada.

Levantei cedo no dia seguinte, havia sido informado por Denise que haveria um transporte às 6 da manhã. Como todos na casa ainda dormiam, arrumei minha mochila, lavei o rosto e, sem perturbar o sono alheio, fechei a porta e deixei para trás o pequeno chalé. Imergi na névoa que esbranquiçava o caminho de terra e caminhei até o ponto. Outros passageiros já aguardavam e não demorou muito para a van chegar. Agradou-me a pontualidade. Segundo as orientações, eu deveria descer na BR 242, entroncamento da entrada de Palmeiras, onde passaria um ônibus da Novo Horizonte que me levaria até Vitória da Conquista. Desconfiado, e sabendo que ficar em rodovia, sobretudo com a manhã quente que se anunciava, não era nada agradável, pedi informações ao cobrador. Logo soube que o carro que eu pretendia pegar passava sim às 6 horas, mas no entrocamento, não onde estávamos. Para tal, eu deveria ter pegado a van das cinco, uma hora antes, aí sim, estaria as seis na entrada de Palmeiras quando o ônibus passasse. A melhor solução, disse o encarregado de cobrar as passagens, é ir para Seabra, lá eu deveria encontrar algum transporte que me levasse a Vitória da Conquista.

Desci na rodoviária de Seabra e procurei os guichês das empresas de transporte. O ambiente deserto pouco me animava. Sem passageiros, sem ônibus, sem funcionários para vender passagens. A um canto uma pequena lanchonete dava mostras que havia almas vivas naquele ambiente. Informei-me com o balconista, o vendedor de passagens da Novo Horizonte não estava, o da Emtram tinha ido ao banheiro. Este, quando voltou, calmamente sentenciou: acabou de sair um carro para São Paulo, outro que passa em Conquista, só amanhã. Mas calma aí, vou ver se ainda está na garagem, se ainda estiver, peço para ele voltar aqui e lhe pegar. Aguarde ansioso o funcionário do guichê discar para o colega, do outro lado da cidade. Após instantes, o agente já estava sacando o talão de passagens. Cinquenta reais. Tive o impulso de questionar o valor, se estava incluído o seguro opcional, essas coisas, mas me contive. Ora, o sujeito está fazendo o carro retornar por minha causa, se eu não conseguisse transporte naquela hora teria que voltar para o Capão ou pernoitar na cidade, o que, de uma forma ou de outra, me traria despesas extras e cansaços indesejáveis. Estava barato. Paguei o ticket, agradeci ao vendedor e esperei tranquilamente a chegada do ônibus.  

O velho Emtram estacionou na rodoviária às quinze para as nove. Logo na subida entendi o porquê do zelo do agente de passagens com o meu embarque: à exceção de mim e mais quatros passageiros, o ônibus estava vazio. Sem demoras o motorista checou o meu bilhete e pôs o gigante de metal no asfalto quente. Aninhei-me em uma poltrona vazia nos fundos do veículo, tentaria dormir. Choacoalejamos por tediosas horas pelos aclives e declives da Chapada Diamantina. Nas subidas podíamos perceber o quanto os anos de serviço pesavam na carcaça do velho ônibus. Mesmo com toda a boa vontade do condutor, que em repetidas reduções de marcha tentava extrair um melhor torque da máquina, avançávamos pelas montanhas como um animal sobrecarregado, em vias de empacar. Tive minhas dúvidas se aquele trôpego veículo alcançaria seu destino, dois mil quilômetros adiante. O pensamento de que minha parada estava há pouco mais de duzentos quilômetros me trouxe certo alívio. Dormi o quanto me permitiram as sacudidelas, o desconforto da poltrona e o calor. Evitei descer nas paradas que o ônibus fazia, como se o permanecer dentro do veículo apressasse o motorista em retomar a viagem. Por volta das cinco horas da tarde avistei o povoado do Pradoso à minha direita. Quinze minutos depois, desci do ônibus, coloquei a mochila nas costas, respirei a amena brisa conquistense de fim de tarde e caminhei tranquilamente pela Avenida Brumado. Imaginei ver, por alguns instantes, mensagens de boas vindas em anúncios e letreiros. Estava em casa.   

Alberto Marlon
                               

Um comentário:

  1. belas impressões!! sempre de olho pro mundo...
    literatura no jornalismo.. é esse o modo de fazer circular um pouco da sensibilidade de quem escreve e lê..

    minhas impressões em crônica e imagens:

    www.furodebala.blogspot.com

    gracias! y adelante!

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