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segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

A divisão da ótica


  Uma fina neblina acoitava friamente meu rosto enquanto caminhava. A umidade que ameaçava transpassar o couro de meus sapatos me fez reconsiderar o trajeto pela grama e, em dois saltos compridos, alcancei o caminho pavimentado que une o Módulo da Secretaria ao prédio que abriga o Teatro Glauber Rocha - creio que apenas uma seleta minoria sabe o nome oficial dos módulos da Uesb.
    Àquela hora da manhã, de uma fria segunda feira, só uns poucos experimentavam uma caminhada pelo campus.  Meia dúzia, pelo que vi. Alcancei o pátio da cantina de Dona Dalva, sentei em uma das cadeiras de plástico e abri um texto da disciplina Semiótica.  Entre as primeiras linhas de uma tradução de Roland Barthes, que conceituava língua e fala, e o labor das funcionárias nos preparativos para abrir a cantina, os ônibus despejaram as primeiras levas de estudantes.

  Com exceção da minha, as demais cinco mesas estavam vazias. Logo à frente, no estacionamento, duas barracas, dessas de armação de metal, revestidas com lona e logomarca de uma distribuidora de bebidas, davam indícios de que aquele espaço foi palco de alguma folia regada a muita cerveja. De fato, duas noites antes, no mesmo chão em que eu pisava, sob melodias de ritmos e timbres, reinaram os mais desvairados deuses...
    Um funcionário saiu pela porta lateral e, após destravar um cadeado, abriu a grade em forma de sanfona que lacra o recinto. Às 8:00 horas a cantina finalmente estava aberta!   Enfim poderia pedir um médio de café com leite e o tradicional pastel de carne. Fritura logo cedo me fará um bem danado, pensei ironicamente. Pouco a pouco novos fregueses foram chegando, de tal forma que, em alguns minutos, o balcão estava congestionado.
    Com um gesto preguiçoso levantei-me e fui a um dos banheiros e, em seguida, à biblioteca. Constatei amargamente que na Uesb, campus de Vitória da Conquista, em pleno início de semana, não havia eletricidade. Duro golpe nas minhas ambições de terminar, logo cedo, uma dissertação sobre Semiótica. Estava no último dia, antes do prazo final. Na verdade não sabia nem como começar o tal texto. Pra mim, até pouco tempo atrás, a palavra “semiótica” evocava algo relacionado à Física, especificamente a parte desta ciência que trata dos fenômenos óticos. Pelo meu conhecimento de mundo fiz uma semiose (mecanismo intelectual que, através de associações de padrões – paradigmas- conhecidos, atribui valores e conceitua objetos e idéias, dando-lhes significado) que me levou a um significado totalmente diverso desta palavra. Enfim, estava “voando” no conteúdo.   
    Cabeça baixa, olhos fixos no chão, dividia-me entre ler mais uma vez os textos (o que demoraria mais tempo) ou “colar” conceitos prontos da apostila. Não, não é meu estilo. Não me considero nenhum modelo de responsabilidade mas, conscientemente, perco na disciplina a fingir que aprendi alguma coisa.  Como uma programação, quase que inconsciente, estava caminhando de volta à cantina – depois de alguns anos certos hábitos nos acompanham e, mais, fazem parte da nossa vida – quando ouço uma voz feminina chamar pelo meu nome.
   Reconheci Fernanda que me acenava. Dirigi-me à mesa, tomei uma cadeira e não pude deixar de notar alguns livros sobre a mesa. Freud (algo sobre Psicanálise) e dois sobre Focault. Fernanda é uma das colegas de sala que, por afinidades, inclusive ideológicas, me faz sentir próximo às boas causas. Penso que a conheço um pouco; talvez me vejo, em outro momento da vida, espelhado naquela personificação de ideais. Nem precisei perguntar se aquelas eram suas leituras atuais, pois logo vi se aproximando Éder, outro colega de Comunicação que cursa, em turno oposto, Psicologia. Estava explicada a origem dos livros.
   O estalo produzido pela abertura da latinha de Fanta é a imagem auditiva que me vem à cabeça quando me recordo de Éder sentando à mesa.  Aceitam? Ofereceu este. Diante das duas negativas, foi tomando o refrigerante aos goles, curtos e incessantes.  Conversamos sobre os mais diversos temas; desde a festa da última sexta, até uso e abuso de drogas. Por fim chegamos aos livros. Trocamos impressões sobre fragmentos do pensamento de Focault e, por fim, desaguamos nos conceitos de Semiótica, que tanto nos atormentavam – tenho plena convicção que a grande maioria da turma está tendo dificuldades para pisar no terreno, ainda há pouco desconhecido, dos semiologistas.
   Provoquei: -- o que vocês acham da discordância de Barthes em relação a Saussure sobre Lingüística e Semiologia (Semiótica para outros). Para Barthes, continuei, a Semiologia faz parte da Lingüística enquanto que, para Saussure é o inverso: esta está contida dentro daquela.  
   --Sem dúvida que a Semiótica, por ser a ciência que trata dos signos e das abstrações mentais que estes envolvem, engloba a Lingüística, respondeu convictamente Fernanda.
  --Sim, complementou Éder, se fizermos um esquema, até gráfico, poderemos demonstrar que a Lingüística, por envolver signos, conceitos, enfim, processos mentais para nomear e valorizar o mundo, é uma ciência que, digamos, é complemento da Semiótica.
  -- Porém, objetei, ao assistir o filme o “Enigma de Kasper Hauser” tenho pensado que, sem a linguagem, como seria os pensamentos, os conceitos? Não haveria realidade, ao menos a humana. As abstrações, juntamente com os processos mentais que estas envolvem, poderiam existir? Até que ponto?
  -- É um axioma, emendou Éder.
  -- Mas é aí que entra Pierce, acudiu Fernanda. Segundo ele, mesmo outras formas de pensamento, até as que não envolvem a linguagem, são semioses. Temos as imagens, os fenômenos naturais, os sons, os cheiros... enfim, todo um  mundo sensitivo que independe da oralidade.
  -- Aí que entra o argumento de Barthes, rebati. De acordo com seu pensamento, existe uma norma geral, um universo de conceitos, no qual a humanidade está inserida; a esse todo, composto dos valores, costumes e padrões humanos, ele chama de “língua”. Ainda, de acordo com o pensador, a “fala” seria as pequenas partes, individuais com valores e significados diversos. A “fala” é como a peça de uma grande engrenagem; sem a máquina a peça não tem sentido de ser, nem ao menos existe; assim como a máquina só funciona com toda a gama de componentes que a compõe.        
   -- Então é isso, complementou Éder com ar filosófico, neste momento estou olhando para aquelas propagandas de refrigerantes, vejo várias imagens, ouço o som da TV e o barulho da cantina, faço mil associações com outras mil imagens e idéias conhecidas. É o agora em minha cabeça, a própria manifestação da realidade.
   --Isto tudo é muito interessante, pena que, por tudo ser muito novo, estamos tendo dificuldades, suspirou Fernanda. Mas, Caetano já está na sala?
   -- Ele esteve por aqui logo cedo, informei.
   -- Talvez ele já esteja na sala, ponderou Éder.
   -- Por meu lado, emendei, tenho que ir ao laboratório, pois preciso escrever a resenha da disciplina Semiótica.
   Despedi-me dos colegas e tomei o rumo da redação como um navegador que infla as velas em direção a uma nova ilha.


4 comentários:

  1. Adorei o seu blog, e principalmente suas cronicas!!!
    Parabens!!! Agora tens mais uma fã.


    Bjusss

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  2. Nossa como você escreve bem!
    Todo poético, a gente viaja em suas palavras.
    Adorei! Vou ficar freguesa....rs

    Bjs

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  3. Gosto da maneira que escreves,nos remete ao lugar,sendo leitor e cúmplice.Flor de cactos

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  4. Passei por aqui para lhe fazer uma visitinha, andei sumida!!!! Você falando sobre a língua e a linguagem... achei fantástico! Fui ao museu da lingua portuguesa em sampa e o seu relato traduz tudo o que eu senti quando estava lá. Cada povo expressa seus valores, costumes e padrões humanos através da língua. Abraços!

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