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terça-feira, 23 de novembro de 2010

Caiu uma filosofia no meu chope!



Noite de sexta feira, uma das mais abafadas do verão conquistense. Ao fundo um blues chora mágoas através de uma caixa acústica. O garçom traz mais uma rodada de chope quando Bárbara deposita mais uma bituca de cigarro em um cinzeiro de vidro que, pela aparência, clama por ser esvaziado. Enquanto Fábio rabisca qualquer coisa em um guardanapo, Alberto boceja e, demonstrando certo enfado, suspira profundamente.


Até às 23 horas o espaço Viela, Sebo e Café, tem sido o porto seguro nas tediosas noites conquistenses, após esse horário é casa de alguém, bar Apogeu ou, hipótese mais temida, casa e cama... Os amigos procuravam não pensar nesses detalhes, até porque ainda estava cedo demais para isso.

- Meu caro, você parece meio triste, perguntou Fábio, puxando Alberto para mais perto.
- Nada de tristeza, apenas  contemplação, respondeu o parceiro de copo.
 - Meu Urso querido, que foi? Perguntou Bárbara, usando o apelido carinhoso que ela mesma tinha criado. 
 - Nada, Babi – a moça ainda tem acessos de fúria quando pessoas do seu círculo de amizade a trata pelo seu nome, ao invés de Babi, simplesmente Babi. Estou apenas pensando um pouco e, às vezes, fico um pouco distante, respondeu Alberto, lambendo o pouco de espuma que fazia uma pequena auréola branca em torno de seus lábios.
 - Pois eu estou efervescente, radiante e efusivo, atalhou Fábio, abrindo os braços e levantando-se levemente da cadeira. Tenho muitos projetos para esse ano: quero fazer teatro, escrever e ler, ler e ler.
 - Nossa! Que fome! Respondeu Babi, com espirais de fumaça emoldurando seus vivos olhos.
 - Minha pequena, começou Fábio,  em tom de discurso: possivelmente já vivi um terço de minha vida, talvez a metade. Tenho me perguntado qual o sentido de se viver. Será acumular dinheiro, títulos e olhos de inveja? Poderá ser, talvez para alguns, mas não pra mim. Estou convencido que a vida é o belo, seja em uma música, uma estória, um poema, um ardente amor ou companhias agradáveis. O restante é curral e ração. Criamos uma ilusão de felicidade  e dedicamos nossa existência a essa ilusão, algo como a aquele filme, Matrix. Quero mais, pequena. Tenho sede de viver, de sentir minhas vísceras se revirando diante de algo que arrebanhe minha alma e me embriague, pra mim esta embriaguez está na arte.

Neste ponto Alberto deu um salto de sua semi letargia e, abrindo mais os olhos, se  dirigiu ao amigo:
 - Você é o que chamam de existencialista, gosto disso. Segundo essa corrente, uma vez que morreram os deuses e até o próprio Deus, o homem  está só e, em sua orfandade, a existência só faz sentido de duas formas: através da arte, seu caso querido Fábio, ou através da luta revolucionária. Como vivemos em uma época estéril de ideais só nos resta a arte.
 - Peraí, Beto, como Deus está morto? Você não acredita na existência de Deus, de uma inteligência superior?   Perguntou Babi, quase cochichando.
 - Bem, começou Alberto, sob o par de olhos curiosos, essa  frase que Deus está morto foi dita no século dezenove, por Nietzsche, se não me engano e, ainda segundo ele, quem matou Deus foi o próprio homem, depois que experimentou a fruta da árvore da ciência do bem e do mal. Depois de Darwin nada mais foi o mesmo. Quanto a mim, depois de anos devotando minha vida à religião organizada, não me preocupo mais com uma ordem moral pro mundo. É meio parecido com moral religiosa grega, antes de Sócrates, é claro. Não me preocupo com a existência de uma inteligência superior, que cria regras e governa o universo, se isso se confirmasse o mundo seria bem diferente. Por isso me identifico com sua visão de mundo a esse respeito, Fábio. Penso que essa ordem moral pro mundo é uma tentativa de “domesticar” – esse termo é nietzscheano – o animal homem. Funciona, afinal nossas instituições são solidificadas nessa crença básica. Mas, como disse, não estou me importando muito com isso. Tenho pensado mais a qual curral me confinar e que tipo de besta de carga irei ser. É mais ou menos isso querido Fábio e doce Babi do meu coração.
- Interessante, atalhou Bárbara, pois esses dias, na aula de Filosofia, a professora estava falando sobre alguns filósofos. Sócrates, Platão, Aristóteles. Tinha também os mais antigos , anteriores a Sócrates, chamados naturalistas.

- Ah, lembro do meu professor de Introdução à Filosofia, disse empolgado Fábio. Inclusive, continuou, lembro que ele dizia que os dois grandes pólos do pensamento pré-socrático era Parmênides e Heráclito. Vejam só, meus queridos, continuou o interlocutor, sem esquecer de regar de chope as palavras, Parmênides dizia que nada pode mudar e que, por isso mesmo, os sentidos são falhos. Ainda, para aquele filósofo, tudo deve ser observado sob as lentes da razão. Heráclito, por sua vez, dizia que tudo muda, e as coisas se dão em um constante movimento, além disso o mundo à nossa volta nos é apresentado pelos sentidos, portanto sendo estes confiáveis.

- Afinal, quem tem razão? Perguntou Babi.

- Não tem essa de quem ganha, disse Alberto, levantando um pouco a voz e, após uma longa tragada em um cigarro mentolado, sussurrou, como quem conta um segredo inconfessável:  o conhecimento é uma construção, do choque de duas coisas diferentes pode surgir algo novo.  

- Essa tal de dialética, riu Fábio, levantando e observando a caneca vazia, como que admirado com um suposto furo no fundo do vidro.

- Li um texto na Internet que falava sobre os sofistas, disse Bárbara, concordando com Fábio sobre os supostos furos nas canecas de chope. Na verdade, continuou ela, acabei chegando a essa página porque procurei o significado da palavra “ sofismar”.

- Então? Chegou mais perto Alberto, a ponto de compartilhar a mesma fumaça do cigarro da moça.

- Pois é, prosseguiu Babi, sofismar vem de uma característica marcante nos chamados sofistas. Estes eram homens sábios, ou tidos como tais, e eram bem respeitados na sociedade. Além disso obtinham boa remuneração para transmitir seus conhecimentos.

- Sim, mas como eles sofismavam? Insistiu Alberto.

- Bem, a questão é que nem todos eram sábios, mas sabiam enrolar um bocado em seus longos discursos. Usavam uma retórica cheia de palavras bonitas que, no fim das contas, não levavam a lugar nenhum. Respondeu a moça.

- Tipo aquele personagem da Escolinha do Professor Raimundo, como era mesmo? Ah, Rolando Lero, emendou Fábio.

- Ah, disse Alberto, como quem lembrou de algo, mas teve um sujeito desses aí que lançou uma máxima que vale até hoje: “ O homem é a medida de todas as coisas”. Ou seja, a realidade, como nós a percebemos, é algo humano, demasiado humano.

- Essa aí eu conheço, levantou o dedo Bárbara, Nietzsche.

- Smart girl, ainda caso contigo, suspirou Alberto. Então, continuou, se não me engano o cara que disse isso foi um conhecido sofista: Protágoras de Abdera. Esse sujeito foi discípulo dos ensinamentos de Heráclito, viveu em Atenas, lá pelos anos de 480 aC e, posteriormente, acusado de ateísmo, teve que se exilar na Sicília, onde morreu com setenta anos.

- Certo, provocou Bárbara, e porque Sócrates tem tanta importância? Por que se fala tanto nele?

- Bem, continuou Alberto, segundo os relatos, Sócrates era um homem baixinho, feio e que, mesmo no meio da multidão, poderia ficar quieto, absorto em seus pensamentos por horas a fio. Dizia-se também que, ao contrários dos sofistas, Sócrates não cobrava nada por seus ensinamentos. Ia além, dizia que, quanto mais se aprendia, mais se podia ver que ainda tinha muito para aprender. Conta-se também que o filósofo, quando dialogava com alguém, deixava este parecer mais inteligente. Dessa forma, em meio a perguntas e estímulos lançados, Sócrates fazia com que seu debatedor se contradissesse e chegasse a conclusões esperadas pelo filósofo. Talvez por ter tido uma mãe que era parteira, Sócrates chamou a este método de maiêutica, ou seja, parto de idéias.

- Agora, é interessante notar, atalhou Fábio, que Sócrates não escreveu nem uma linha. Tudo que restou sobre suas idéias foi registrado pelo seu mais famoso discípulo, Platão. Na verdade não se pode falar de um sem o outro. Pode-se confundir Platão com Sócrates.

- Sabe, Babi, disse Alberto, em um falso tom sério, a história do pensamento humano se divide entre pré e pós Sócrates mais pelo que escreveu Platão, com situações e palavras atribuídas a seu mestre. Conceitos como o belo, o mundo perfeito – sempre atribuindo imperfeições a este -, o conhecimento puro, em contraste com este mundo de ilusão e sombras imperfeitas . Platão resumiu esta idéia com o mito da caverna. Imagine uma caverna escura, dentro existem criaturas acorrentadas, impossibilitadas de se virar e ver o exterior. O que esses seres podem apenas enxergar são sombras do mundo exterior, imagens imperfeitas do verdadeiro mundo. Um dia uma dessas criaturas conseguiu se soltar das correntes e, com muito esforço, vislumbrou o verdadeiro mundo do lado de fora. Ao retornar tentou convencer aos seus iguais sobre a verdade, estes o tomaram como louco e o mataram. Na estória as criaturas são os seres humanos e aquele que tentou convencer os demais sobre a verdade é Sócrates que, assim como o personagem, também foi morto pelos seus.

- Mas como? Ele não era um respeitado sábio? Quis saber Bárbara.

- Era mas, talvez por isso conseguiu arrumar muitos inimigos. Armaram um processo, o acusaram de ateísmo e de corromper a juventude. Ele não se defendeu. Foi condenado a tomar cicuta – um veneno mortal – de forma que morreu pelas próprias mãos. Respondeu Alberto. 

- Repare a semelhança com o caso de Jesus, complementou Fábio. São doutrinas parecidas.

- Sim, continuou Alberto, dizem que o cristianismo é uma forma de neo-platonismo.

- E Aristóteles, foi comentado também em aula, terei que ler sobre ele também. Disse Babi.

- Ah, meus queridos, os vapores do álcool já estão refrescando minha memória, deixa ver se lembro, suspirou Fábio, fazendo um gesto para que o garçom refaça sua função e reidrate a mesa. Segundo o meu professor, Aristóteles foi o último grande filósofo grego. Discípulo de Platão, quando este já contava setenta e um anos, o aluno era, antes de tudo, um estudioso metódico. Desenvolveu muitos trabalhos, principalmente no campo da anatomia e da biologia. Diferente de seu mestre, Aristóteles retornou ao conceito de ver a realidade como ela nos vem aos olhos. Enquanto Platão vivia no mundo das idéias, tentando sair da sua caverna, Aristóteles se abria para o mundo dos sentidos. Seu interesse pela natureza  e pelos processos naturais o impulsionou na direção de diversos estudos. Dos cento e setenta títulos que se acredita que o filósofo escreveu, quarenta e sete chegaram intactos aos dias atuais.

- Perfeito, meu caro, emendou Alberto. Convém notar que o filósofo em questão também escreveu trabalhos que tratam sobre política, ética, lógica e outro temas. O cara era uma enciclopédia de conhecimento.

- É, gentlemans, depois desse bombardeio de informações o chope terá pra mim um gosto de papo filosófico.

Os músicos pararam para uma pausa. Por um breve instante pôde-se sentir a textura do som que emergia das mesas, imersas em fumaça de tabaco, sorrisos e afagos de almas que se agrupam e se protegem do frio das cidades, mesmo em noites quentes de verão.      

Vitória da Conquista, 08 de abril de 2009.
  

3 comentários:

  1. Religião foi sim criada pelo homen em função de uma ordem a se estabelecer!!!
    mas fico com Aristóteles de que Deus é o primeiro motor imovel da existência e do ponto de vista físico, o universo ta muito organizado pra ser obra do mero acaso...

    "crônica muito rica" gostei muito parabéns

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  2. Gosto de ler teus escritos
    Sabes que escreve bem?!
    Acho que sim.

    Obrigada por ter me dado a honra de ser umas das protagonistas desta história.

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  3. Caro Albert, primeira vez que visito esse seu mundo 'particular', e me veio uma sensação de nostalgia, lembranças do tempo da faculdade, que nem faz tanto tempo assim.
    Nossas poucas conversas me enriqueceram demais, e hoje, tenho a alegria de ver e saber que posso continuar aprendendo com vc por meio desse blog. Vc é incrível man. Saudades.

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